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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Vale a pena ler: A oração do Mundo

Por Leandro Karnal - O Estado de S.Paulo
O Cristianismo é o Judaísmo com recall da fábrica. Não que a lei mosaica apresentasse um “defeito” que implicasse conserto. Era apenas um detalhe, uma minudência. Os filhos de Abraão tinham metas menos abrangentes: eram povo eleito e não religião universal. Paulo de Tarso fez um delicado ajuste na máquina. Surgia o caráter missionário e universal do Judaísmo turbinado 2.0: o mundo cristão.

O modelo original está presente no adaptado. Há um ponto muito interessante de diálogo no Pai-Nosso, a única oração de fato presente no Novo Testamento. O Magnificat de Maria com a prima Isabel pode ser usado como oração, assim como o poético Nunc Dimittis de Simeão. Porém, o Pai-Nosso é original e único.

Jesus ensinou a oração no contexto do chamado Sermão da Montanha (no Evangelho de Mateus, reaparecendo em Lucas). Logo, faz parte do núcleo duro do Cristianismo e está inserida na passagem mais importante para definir o novo fiel. Os católicos dizem rezar, os evangélicos, orar e os kardecistas preferem a expressão prece. O Pai-Nosso é a reza/oração/prece mais significativa do Ocidente, a mais empregada e um ponto de união com quase todos os adeptos da Boa-Nova. Sendo o Cristianismo a religião mais numerosa do planeta e sendo o Pai-Nosso sua oração principal, devemos supor que seja, numericamente, a mais importante oração da humanidade.

A novidade começa pela expressão Pai. Em aramaico, Jesus usa Abba. É uma intimidade com Deus que deita raízes em Abraão. O diálogo do marido de Sara com o Criador era em tom direto que admitia até negociação. Moisés, de formação principesca e sofisticada, traz a ideia de um Deus de majestade, mais inacessível, atuante com o povo, porém solene e teatral. O Deus mosaico prefere ser visível em epifanias com raios e colunas de fogo. Jesus sai do campo do Altíssimo Adonai/Senhor para o íntimo Abba/Pai. Moisés teve de retirar a sandália para falar com a sarça que ardia. Era um momento dramático. Ao ensinar a oração que analiso, Jesus mandou entrar no quarto e fechar a porta. São duas maneiras de encarar a comunicação com Deus.

O Pai-Nosso apresenta sete pedidos formais (na versão de Mateus). Começa com a invocação do Pai divino, pede que seu nome seja santificado (1), que o Reino venha até nós (2), que Sua vontade prevaleça aqui e no além (3), pede pelo sustento material (4), implora pelo perdão dos pecados (5), reforça o desejo de não cair em tentação (6) e, por fim, elabora o desejo de que o Mal (ou o Tentador) não nos atinja (7). O curioso é que o mesmo Jesus ensinaria a pedir tudo em nome dele ao Pai, mas não usa Seu nome na única oração formal que ensinou.

Nessa oração há uma clássica raiz judaica. Trata-se do princípio da teshuvah, do retorno à graça divina mediante a disposição de agir dentro do certo. Peço que Deus me perdoe, “assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Mesmo que, no futuro, a ideia da graça salvífica fosse sendo tornada cada vez mais gratuita e generosa, a base do Evangelho ainda mantém a tradição judaica de pedir perdão a Deus pelos pecados que cometi contra Ele e aos irmãos pelos pecados vividos na minha espécie. Religião muito prática, o Judaísmo implica sempre a necessidade de ação humana para completar a obra divina, da disposição interna em ser justo, de perdoar a cada Yom Kippur (dia do perdão) para estar inscrito no livro da vida no novo ano.

Pequena divergência gramatical. Católicos, tendo usado a Vulgata de São Jerônimo e o latim, registraram o Pai-Nosso com o pronome Vós. “Santificado seja o Vosso nome”, rezam os filhos de Roma. Protestantes históricos foram muito marcados pela tradução luterana direta do grego e invoca que “Teu nome” seja santificado. Também o latim mais literal traduzia dimitte nobis debita nostra por “perdoai as nossas dívidas”. Por vários motivos, a forma mais recente preferiu a também correta “perdoai as nossas ofensas” sem a associação material que a palavra dívida parece carregar. Deus deve me purificar dos pecados e não da Serasa Experian.

Assim, com ligeiras variações linguísticas, o Pai-Nosso é a oração mais repetida no mundo. Parece ter resumido tudo o que um fiel cristão precisa ou quer ver atendido de forma clara e direta. Pode ser pensado palavra a palavra, como um clérigo recomenda a Das Dores no conto Cabelos Compridos (1904) de Monteiro Lobato, ou rezado de “carreirinha”, como geralmente o é. Funciona como ponto de meditação, projeto de vida, mantra pré-lógico e ponto de união de um grupo. Com mãos erguidas ou com dedos entrelaçados em prece, sozinho ou em grupo, antes de refeições ou em meio a angústias, tem a força tradicional de toda identidade cultural. Pai-Nosso pode virar até talismã: gravado seu texto em um círculo, formando uma oração concêntrica com funções de proteção.

Na Igreja do Pai-Nosso (Monte das Oliveiras, Jerusalém) ele está escrito em várias línguas. Cada nacionalidade procura e fotografa no seu idioma. Quase sempre os brasileiros ficam surpresos pela forma arcaica da grafia. Porém, ao encontrá-lo, ilumina-se uma identidade cultural entre as pessoas de mesma língua e mesma fé. Afinal, a principal lição do Pai-Nosso não deriva de ter sete pedidos ou a autoridade absoluta de ter sido ensinado por Jesus. A principal lição do Pai-Nosso está no substantivo e no pronome possessivo iniciais. Ao dizer que há um Pai e que é nosso, reconheço-me no coletivo humano: eis a ideia da fraternidade humana. Ter um mesmo Pai e uma mesma origem deveria ser a grande lição religiosa.

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