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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Vale a pena ler: Perfumaria

Por Fernanda Torres, atriz e colunista do jornal Folha de SP
No fim do ano passado, Anthony e Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral e Adriana Ancelmo, três ex-governadores e uma primeira-dama do Rio de Janeiro, foram parar no xilindró. Quinze anos de desmonte, desvio, populismo e corrupção, alimentando a horda de descamisados que servem de bucha de canhão do narcotráfico.

Cada vez que Temer, do mesmo MDB de Cabral, afirma que o Brasil não pode se tornar refém do crime organizado, eu me pergunto a que organização ele se refere.

Desde que o presidente moveu as peças do xadrez eleitoral, entregando o abacaxi na mão do general Braga Netto, a segurança pública tomou o lugar do futebol na vida do brasileiro.

Não há roda de amigos, noticiário de TV, crônica ou comentário de jornal que não se debruce, a raso ou a fundo, no exame da precariedade de nossas fronteiras, do poder paralelo das facções dos presídios, da inépcia dos excelentíssimos eleitos e das raízes das nossas mazelas sociais.

Uns alardeiam a volta do regime militar, outros a desejam. Há os que condenem a Justiça frouxa e a banda podre da polícia. Excomunga-se Pezão, Crivella e Gilmar, rememora-se os milhões de Geddel; evoca-se a bancarrota da Petrobras e a roubalheira dos partidos; fala-se em narco país e culpa-se a política falida antidrogas.

Há diagnóstico para tudo, só não há solução: 7x1 na escalada do crime. O Rio é o Brasil de amanhã.

Escrevo depois de uma reunião sobre segurança na escola do meu filho. Hoje, ele teve treinamento de fuga no recreio. No ano passado, fui buscá-lo às pressas, inúmeras vezes, com os tiros de fuzil a ecoar pela Gávea. Pânico, aulas suspensas, calendário arruinado, um quadro desolador.

Na época, um tanque foi estacionado na esquina do colégio, o que deve acontecer novamente, assim que o general por em prática seu plano de ação, feito de improviso, como tudo por aqui.

É difícil explicar a sensação de desterro de levar uma criança para a escola, em meio à metrancas, caveirões e soldados fardados. Como explicar? Mas isso é nada, perto da realidade de quem vive na Maré, em Japeri ou na Penha.

Esse é um caderno de cultura. Caberia, aqui, escrever sobre "A Ascensão e Queda de Adão e Eva", mais um livro estupendo de Stephen Greenblatt, que investiga a origem do mito de criação da Bíblia.

Ou indicar as "Narrativas Radiofônicas", de Walter Benjamin, recém traduzidas para o português. Trata-se de uma compilação preciosa das conferências para crianças, realizadas pelo filósofo no fim dos anos 1920. Fausto, Kaspar Hauser e Cagliostro, a saga dos ciganos e a Lei Seca, o terremoto de Lisboa e o fim de Pompeia descrito por Plínio, o jovem; está tudo lá.

Eu poderia, também, dizer do quanto gostei de "Força Maior", filme de Ruben Östlung, sobre um pai que abandona a família em meio a uma avalanche, falhando na sua missão de macho. E dizer da decepção que o mesmo Östlung me causou com "The Square", filme em cartaz, que recebeu a Palma de Ouro em Cannes.

Mas nada disso tem relevância, diante do estado de sítio em que se encontra a minha cidade. Não vejo sentido na arte.

Talvez, só em Geovani Martins, autor de "Rolézim", um milagre literário saído da violenta Rocinha, vizinha ao colégio do meu filho.

Martins transforma em gramática o dialeto dos morros. E apresenta, com profundidade de Camus, a consciência trágica de um moleque de arrastão. A cisão social é tão grave, que se deu na língua. Perto de Geovani, tudo mais soa a perfumaria.

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