A impunidade, por seus graves reflexos negativos sobre a ordem social, afetando a possibilidade de existência efetiva de uma ordem jurídica democrática, é uma espécie de degradação da convivência humana de extrema gravidade, pois compromete os fundamentos do Estado Democrático de Direito. A observação atenta dos efeitos da impunidade, a partir de sua origem e das condições dos que se beneficiam dela, deixa patente que existe uma conexão entre a impunidade no setor público e a que ocorre no setor privado, numa correlação que é inevitável e que compromete todo o universo da ordem jurídica. Um dos aspectos característicos da impunidade, que favorece sua manutenção e expansão, é que ela, além de ser silenciosa, não tem a aparência de uma violência, razão pela qual ela dificilmente desperta reações vigorosas e obtém com relativa facilidade o benefício da tolerância, pois em decorrência dessas características muitos não percebem sua gravidade e seu papel determinante na ocorrência de muitos vícios de comportamento, que são gravemente prejudiciais a toda a sociedade.
Tomando-se como ponto de partida a impunidade no setor público, a impunidade de agentes públicos de maior responsabilidade e cujo comportamento tem maior reflexo na ordem política e social pode-se afirmar que tal impunidade é essencialmente antidemocrática. Basta assinalar que nesses casos a impunidade gera uma casta de privilegiados, de pessoas que não são submetidas às imposições legais que, por pressuposto, deveriam ser aplicadas de modo igual a todas as pessoas. Aí está uma evidente agressão a um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Inevitavelmente, a impunidade de personagens altamente situados na hierarquia da ordem pública atua como exemplo e estímulo para que todos os setores da organização pública, aí compreendidos os âmbitos do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, sejam atingidos pela convicção de que todos os que atuam nesse campo serão igualmente beneficiados pelo privilégio da impunidade. Assim, pois, além da agressão ao princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, em termos de direitos e responsabilidade, há também o efeito pernicioso do mau exemplo, pois a impunidade dos que, por suas atribuições, têm maior responsabilidade, será um forte estímulo para que outros procurem obter vantagens e benefícios por meios ilegais, tendo a convicção de que também serão beneficiados pela impunidade.
A par disso, e também como consequência inevitável, a possibilidade de também serem beneficiados pela impunidade é um fator de estímulo para a prática de ilegalidades de muitas espécies, inclusive de violências e crimes de maior ou menor gravidade, pela convicção disseminada de que existe grande possibilidade de que os agentes das práticas ilegais poderão ficar impunes. Assim, no extremo, expande-se a convicção de que, inspirados na impunidade dos agentes públicos superiores, os corruptos de maior envergadura, os policiais e os agentes da fiscalização que têm contacto direto e imediato com a população não serão rigorosos no controle e na busca de punição dos infratores, sendo por isso facilmente corrompíveis. E isso acaba atuando como um fator a mais de estímulo a práticas ilegais, inclusive à criminalidade de muitas espécies, pela generalização da esperança, quase certeza, da impunidade.
Uma decorrência extremamente grave dessa influência da impunidade nas práticas sociais é a desmoralização das instituições e dos agentes públicos, sendo inevitável a generalização da convicção de que essa é uma característica do sistema realmente existente. E a partir daí será também inevitável a desmoralização das instituições e dos instrumentos jurídicos de definição da ordem social e de fixação de direitos e deveres da cidadania. A existência de uma Constituição proclamando que o Brasil é um Estado Democrático de Direito não terá a força de um compromisso superior, cujo respeito é necessário para o estabelecimento e desenvolvimento de uma sociedade democrática, regida pelo direito e direcionada para a efetivação de uma ordem social justa. Por tudo isso, a denúncia da impunidade e o esforço determinado para sua eliminação devem ser considerados tarefas prioritárias, para cuja consecução devem conjugar seus esforços os advogados, o Ministério Público, a magistratura e todos os que, em qualquer setor de atividade, exercendo ou não um múnus público, possam dar sua contribuição para que o povo brasileiro viva, efetivamente, numa ordem jurídica democrática.
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