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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"Cantinho do Emir" - O rádio do papai

Do blog "Saudade Perfumada":
O RÁDIO DO PAPAI
A Segunda Guerra Mundial transcorria animadíssima, com os homens espantados ante a eficiência assassina dos tanques e da aviação de Adolf Hitler. Nunca se soubera de coisa semelhante: bombas arrasavam quarteirões inteiros e nada parecia ser capaz de impedir a iminente vitória do Terceiro Reich.
Na pequenina Belterra de 1942 também se estava a par das sensacionais peripécias que punham fogo na Europa e já se alastravam por outras esquinas do mundo. Afinal, existiam, no lugarejo, nada menos de quatro rádios, e um deles - o maior e melhor! - pertencia ao senhor Vidal Bemerguy, pai deste incompetente escriba.
Hoje, o "status" das pessoas é aferido, sobretudo, pelo tamanho do carro e pela suntuosidade do palacete. Naquela época, entretanto, o prestígio social derivava de coisas mais miúdas, como um rádio, um ventilador ou uma geladeira. Das três, só a última, até certo ponto, não possuíamos em casa.
Papai comprara, já de segunda mão, um ventilador da marca “General Electric”, e, por difícil que seja de acreditar, ocorreu o seguinte com aquele anacrônico, mas eficientíssimo eletrodoméstico: depois de casado, tive-o em meu lar durante vários anos, até que, havendo adquirido um outro, mais moderno, o dei de presente a um dos meus primos. E ainda agora - quatro décadas transcorridas após a fabricação a máquina prossegue funcionando, em ótimas condições!
Geladeira, no pleno sentido da palavra, não tínhamos; mas, de algum modo era suprida a sua falta. Meu pai mandara confeccionar uma enorme caixa, revestida de zinco, e ali, em meio a muita serragem de madeira, eram colocados blocos de excelente gelo, adquiridos no comércio local. Os alimentos ficavam preservados da decomposição pelo tempo que se quisesse, desde que o depósito fosse periodicamente reabastecido; ainda consigo sentir o característico cheiro de mofo que emanava do recipiente quando ele permanecia sem utilização durante alguns dias.
Agora, o sucesso da família girava mesmo em torno do enorme rádio de onze válvulas - também um "GE” adquirido de certo americano que retornara ao seu país. Custara a fortuna de 20.000 réis... Como os outros receptores sempre estavam fazendo os respectivos proprietários passarem vexames, falhando na hora crucial da manchete emocionante, o nosso aparelho era uma atração noturna em Belterra.
Com sua engenhosidade para tudo, meu genitor ergueu, nas cercanias da casa, dois mastros com quinze metros de altura, separados um do outro por uma distância de cinquenta braças. Bem no topo de cada poste ficava um pontiagudo cone de alumínio, para impedir o indesejável pouso de urubus; entre ambos corria a antena, e, por isso, a sintonia era sempre satisfatória,excelente mesmo.
Até hoje, com minha abissal ignorância nesses "chocantes" problemas elétricos, não sei explicar a mágica operada por papai. Ele passou uns três dias mexendo no atordoante conjunto de peças da engenhoca, e, de repente, pôde anunciar, triunfante: bastava que se apertasse uma das teclas do painel e a mesma emissora era captada em todo o mostrador! Dizendo de outra maneira: podia-se correr o ponteiro de uma ponta a outra e só se ouvia uma estação. Em cada componente do teclado, o milagreiro escrevera o nome de uma das vedetes da época - “Nacional”, “BBC” ou “Mayrink Veiga”.
O número de ouvintes diários era tão elevado que papai tinha de colocar o rádio no alpendre da residência, pois o pequeno prédio não comportava as dezenas de visitantes que vinham saber das novidades. Já ao cair da noite, a “BBC de Londres” abria o festival de desgraças com o primeiro boletim informativo e, até bem tarde, prosseguia o rosário de bombardeios e naufrágios. Lembro-me da ansiedade com que eram ouvidos os informes e dos gritos de entusiasmo quando saía alguma notícia favorável aos torcedores... o torpedeamento de navios brasileiros por submarinos nazistas provocou monumentais crises histéricas e discussões de tal magnitude, que se ia dormir com a cívica emoção de que a pátria estava salva, a rajadas de saliva e sob o poder de medonhos insultos despejados sobre o covarde inimigo...
Também os programas humorísticos da inesquecível e realmente engraçada dupla “Jararaca e Ratinho” - em noites de sextas-feiras - provocavam formidáveis gargalhadas. Muitos anos depois, jantando, em Belém, num restaurante, bem ao lado desses dois pândegos que tanto riso tinham espalhado em minha infância, fiquei sério, a olhá-los discretamente, e fazendo força para reprimir uma lágrima que desejava denunciar o que ocorria nos corredores de meu saudoso coração...
Menino de dez anos, eu não conseguia entender muita coisa que os locutores diziam. Contudo, ficava quieto, numa cadeira, sentindo-me, pelo menos, importantíssimo como “filho do dono do rádio”... Em noites de jogos de futebol - sobretudo a Copa do Mundo e os clássicos entre cariocas e paulistas - a vibração era intensa e, a propósito, retive, na memória, um fato singularmente pitoresco.
Dentre os desportistas mais assíduos e fanáticos, havia um, operário, cujo nome deliberadamente omito. Nunca mais eu vi alguém que “torcesse” de forma tão original: o homem acompanhava os lances mais decisivos comprimindo os testículos com ambas as mãos, num nervosismo quase incontrolável. Pior ainda: na mesma proporção em que a bola se aproximava das traves, o esquisito senhor ia erguendo as glândulas, no suarento e penoso esforço de quem levanta um fardo pesadíssimo. O resultado da estranha manobra é que, ao entrar, ou se perder, o gol, o cidadão conseguira suspender a bagagem reprodutora até perto do umbigo!... E não havia gozações, imediatas ou posteriores, que estimulassem o excêntrico ouvinte a tentar descobrir um modo mais discreto e elegante de exteriorizar tempestades emocionais...
Muita, muita alegria nos deu o rádio velho de papai! Velho? uma última propagandazinha para a “General Electric”: além do ventilador, quando me casei, meu pai também me presenteou com o famoso aparelho. Usei-o durante alguns anos e, despontando a era dos receptores transistorizados, decidi entregá-lo a um parente. Até hoje está em forma e... já fora comprado de segunda mão!
Ah!... As antigas obras artesanais... Como duravam!... Os modernosos objetos, fabricados em série, conseguem, no máximo, resistir um ano ou dois - isto quando já não trazem defeitos de origem. Provas? Em pouco mais de uma década, já tive nada menos de seis rádios: vão pifando todos, um atrás do outro...
Sociedade de consumo... Que saudade, meu Deus, dos velhos e enormes trambolhos elétricos!... O progresso estraga tudo. 
(Este texto foi tirado de um livro de memórias (não publicado) de Emir Bemerguy, intitulado "Enquanto eu me lembro". Foi escrito no final dos anos 1970.)
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