Do blog "Saudade Perfumada":
O RÁDIO DO PAPAI
A Segunda Guerra Mundial transcorria
animadíssima, com os homens espantados ante a eficiência assassina dos tanques
e da aviação de Adolf Hitler. Nunca se soubera de coisa semelhante: bombas
arrasavam quarteirões inteiros e nada parecia ser capaz de impedir a iminente
vitória do Terceiro Reich.
Na pequenina Belterra de 1942 também se
estava a par das sensacionais peripécias que punham fogo na Europa e já se
alastravam por outras esquinas do mundo. Afinal, existiam, no lugarejo, nada menos
de quatro rádios, e um deles - o maior e melhor! - pertencia ao senhor Vidal
Bemerguy, pai deste incompetente escriba.
Hoje, o "status" das pessoas
é aferido, sobretudo, pelo tamanho do carro e pela suntuosidade do palacete.
Naquela época, entretanto, o prestígio social derivava de coisas mais miúdas,
como um rádio, um ventilador ou uma geladeira. Das três, só a última, até certo
ponto, não possuíamos em casa.
Papai comprara, já de segunda mão, um
ventilador da marca “General Electric”, e, por difícil que seja de acreditar,
ocorreu o seguinte com aquele anacrônico, mas eficientíssimo eletrodoméstico:
depois de casado, tive-o em meu lar durante vários anos, até que, havendo
adquirido um outro, mais moderno, o dei de presente a um dos meus primos. E
ainda agora - quatro décadas transcorridas após a fabricação a máquina
prossegue funcionando, em ótimas condições!
Geladeira, no pleno sentido da
palavra, não tínhamos; mas, de algum modo era suprida a sua falta. Meu pai
mandara confeccionar uma enorme caixa, revestida de zinco, e ali, em meio a
muita serragem de madeira, eram colocados blocos de excelente gelo, adquiridos
no comércio local. Os alimentos ficavam preservados da decomposição pelo tempo
que se quisesse, desde que o depósito fosse periodicamente reabastecido; ainda
consigo sentir o característico cheiro de mofo que emanava do recipiente quando
ele permanecia sem utilização durante alguns dias.
Agora, o sucesso da família girava
mesmo em torno do enorme rádio de onze válvulas - também um "GE” adquirido
de certo americano que retornara ao seu país. Custara a fortuna de 20.000
réis... Como os outros receptores sempre estavam fazendo os respectivos
proprietários passarem vexames, falhando na hora crucial da manchete
emocionante, o nosso aparelho era uma atração noturna em Belterra.
Com sua engenhosidade para tudo, meu
genitor ergueu, nas cercanias da casa, dois mastros com quinze metros de
altura, separados um do outro por uma distância de cinquenta braças. Bem no
topo de cada poste ficava um pontiagudo cone de alumínio, para impedir o
indesejável pouso de urubus; entre ambos corria a antena, e, por isso, a
sintonia era sempre satisfatória,excelente mesmo.
Até hoje, com minha abissal ignorância
nesses "chocantes" problemas elétricos, não sei explicar a mágica
operada por papai. Ele passou uns três dias mexendo no atordoante conjunto de
peças da engenhoca, e, de repente, pôde anunciar, triunfante: bastava que se
apertasse uma das teclas do painel e a mesma emissora era captada em todo o
mostrador! Dizendo de outra maneira: podia-se correr o ponteiro de uma ponta a
outra e só se ouvia uma estação. Em cada componente do teclado, o milagreiro
escrevera o nome de uma das vedetes da época - “Nacional”, “BBC” ou “Mayrink
Veiga”.
O número de ouvintes diários era tão
elevado que papai tinha de colocar o rádio no alpendre da residência, pois o
pequeno prédio não comportava as dezenas de visitantes que vinham saber das
novidades. Já ao cair da noite, a “BBC de Londres” abria o festival de
desgraças com o primeiro boletim informativo e, até bem tarde, prosseguia o
rosário de bombardeios e naufrágios. Lembro-me da ansiedade com que eram
ouvidos os informes e dos gritos de entusiasmo quando saía alguma notícia
favorável aos torcedores... o torpedeamento de navios brasileiros por
submarinos nazistas provocou monumentais crises histéricas e discussões de tal
magnitude, que se ia dormir com a cívica emoção de que a pátria estava salva, a
rajadas de saliva e sob o poder de medonhos insultos despejados sobre o covarde
inimigo...
Também os programas humorísticos da
inesquecível e realmente engraçada dupla “Jararaca e Ratinho” - em noites de
sextas-feiras - provocavam formidáveis gargalhadas. Muitos anos depois,
jantando, em Belém, num restaurante, bem ao lado desses dois pândegos que tanto
riso tinham espalhado em minha infância, fiquei sério, a olhá-los
discretamente, e fazendo força para reprimir uma lágrima que desejava denunciar
o que ocorria nos corredores de meu saudoso coração...
Menino de dez anos, eu não conseguia
entender muita coisa que os locutores diziam. Contudo, ficava quieto, numa
cadeira, sentindo-me, pelo menos, importantíssimo como “filho do dono do rádio”...
Em noites de jogos de futebol - sobretudo a Copa do Mundo e os clássicos entre
cariocas e paulistas - a vibração era intensa e, a propósito, retive, na
memória, um fato singularmente pitoresco.
Dentre os desportistas mais assíduos e
fanáticos, havia um, operário, cujo nome deliberadamente omito. Nunca mais eu
vi alguém que “torcesse” de forma tão original: o homem acompanhava os lances
mais decisivos comprimindo os testículos com ambas as mãos, num nervosismo
quase incontrolável. Pior ainda: na mesma proporção em que a bola se aproximava
das traves, o esquisito senhor ia erguendo as glândulas, no suarento e penoso
esforço de quem levanta um fardo pesadíssimo. O resultado da estranha manobra é
que, ao entrar, ou se perder, o gol, o cidadão conseguira suspender a bagagem
reprodutora até perto do umbigo!... E não havia gozações, imediatas ou
posteriores, que estimulassem o excêntrico ouvinte a tentar descobrir um modo
mais discreto e elegante de exteriorizar tempestades emocionais...
Muita, muita alegria nos deu o rádio
velho de papai! Velho? uma última propagandazinha para a “General Electric”:
além do ventilador, quando me casei, meu pai também me presenteou com o famoso
aparelho. Usei-o durante alguns anos e, despontando a era dos receptores
transistorizados, decidi entregá-lo a um parente. Até hoje está em forma e...
já fora comprado de segunda mão!
Ah!... As antigas obras artesanais...
Como duravam!... Os modernosos objetos, fabricados em série, conseguem, no
máximo, resistir um ano ou dois - isto quando já não trazem defeitos de origem.
Provas? Em pouco mais de uma década, já tive nada menos de seis rádios: vão
pifando todos, um atrás do outro...
Sociedade de consumo... Que saudade,
meu Deus, dos velhos e enormes trambolhos elétricos!... O progresso estraga
tudo.
(Este texto foi tirado de um livro de memórias (não publicado) de Emir Bemerguy, intitulado "Enquanto eu me lembro". Foi escrito no final dos
anos 1970.)
Leia também >"Cantinho do Emir"
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