Por Milton Cunha:
A gargalhada luminosa de Fafá de Belém do outro lado da linha, e depois o fatal convite: "pode ser jurado do Rainha das Rainha do Carnaval paraense?". O frio na espinha, o coração varado pela certeira flecha da memória. Embarquei para reencontrar minha gente, meu passado, num tunel de mangueiras e no constante vento que sopra da baía do Guajará para dentro da Belém, parte de meu ser.
Me lembro de "La Vie en Rose", desfilado por Sheyla Chady e confeccionado por Paula Novelino Monteiro de Castro, quarenta anos atrás. Como assim, criatura? Será que só os veados sonham? Será que estas coisas só são marcantes para as bichas que carregam estes nomes como sinônimo de um glamour que almejam, uma fantasia que transforma a vida em mais bela e vivivel? Será melhor viver neste encantamento que sobreviver na dureza de um cotidiano cruel, que arranca o imaginário?
4 décadas se passaram, e era hora de reencontrar a semente disto tudo: o primeiro boá tingido em duas cores, que hoje sei ser de pena de cegonha. Naquela época o fio enrolado de plumas era apenas a mais hipnotizante das coisas, um tufo leve da cor de Deus (que para mim é fúcsia); e a confissão de um crime: eu arranquei uma das penas sem que ninguém visse, quando ela, eleita Rainha, passou na passarela de um chá beneficiente, realizado uma semana depois. Levado por uma amiga de minha mãe, que já sabia que aquilo seria o meu futuro, ainda que escondido de pai e mãe, eu sentei colado na passarela, e quando todos olhavam para cima, eu olhei os pés e arranquei um pena, que futua sobre mim até hoje, inspiradora, me empurrando para a frente, com esta inabalável vontade de aquarelar o mundo.
Era hora de reencontrar as candidatas que eu imitava, nos seus remelexos diante do juri. Fui levado de uma sala para o palco do centro de convenções, onde dois mil paraenses se espremiam para ver o que já se repete por 67 anos: 21 candidatas tentam ser a soberana do carnaval, todas lindas e vestindo fantasias de destaques-sexy de Escola de Samba. No caminho para a luz do palco, eu era o garoto agora de smoking, e revi Adernison, o organizador, Clara Pinto, a coreógrafa. Sentei em minha mesa diante da multidão, e o som ecoou: Milton Cunha, carnavalesco da Cidade do Samba do Rio de Janeiro. Levantei, gigante, e agradeci os aplausos abrindo os braços rumo à multidão. Ali, no meio da floresta,eu abraçava alguma criança que estivesse atentamente me olhando, acreditando que é preciso fantasiar; e um dia, num futuro distante, este ser também escreverá que viu minha roupa, meu cabelo, meu sorriso, e de mim arrancou uma pena que seguirá para sempre com ele, mantendo vivo o sonho de ser feliz.
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