Emir nasceu no dia 04 de março de 1933, em Fordlândia, onde seu pai (Vidal) trabalhava na
Companhia Ford. Este é o primeiro capítulo do livro de memórias de Emir,
onde ele fala sobre a criação do local.
FORDLÂNDIA
Henry Ford, o magnata do automóvel, fundara, à margem direita do rio Tapajós, no Pará, um núcleo experimental que estava atraindo gente dos mais longínquos pontos do país: Fordlândia, no município de Itaituba. O ricaço americano conseguira, do governo Washington Luís, por um prazo contratual de noventa e nove anos prorrogáveis, a concessão de duas imensas glebas. E, através de cientistas prodigamente pagos (ele mesmo nunca chegou nem perto do Brasil), o célebre industrial decidira cultivar selecionadas seringueiras naquelas terras virgens. Com o látex obtido, pretendia abastecer suas fábricas de carros, numerosas já nessa recuada época; Belterra, a outra comunidade com idênticos objetivos, seria implantada somente oito anos mais tarde.
Vencido, pois, como tantos outros jovens, pelo fascínio das notícias que se irradiavam do novo Eldorado, meu pai, Vidal Macedo Bemerguy, aos vinte e um anos incompletos, também veio conferir as douradas informações: largou tudo, inclusive (provisoriamente) a noiva, e desceu de perto para abrir a boca ante as maravilhas que os americanos estavam realizando. Chegou, viu e ficou, ao comprovar que não havia exagero nas narrativas lidas ou escutadas: tudo funcionava muito bem, com requintes de organização, detalhe que particularmente encantou o curioso rapaz, que desde cedo revelava antipatia por qualquer coisa confusa, sem ordem.
Era natural, entretanto, que o excitante garimpo sem ouro agisse como poderoso chamariz para toda espécie de aventureiros. Só no primeiro ano de implantação, já havia cerca de quatro mil operários de todas as procedências na fervilhante vila. Apesar das cautelas com que compunham seus quadros funcionais, os “gringos” não conseguiram evitar que lobos se infiltrassem no meio de cordeirinhos. E foram esses que, sem mais nem menos, num injustificável ato de molecagem coletiva, lideraram, um dia, a séria desordem que passaria a ser posteriormente lembrada como “Quebra-panelas”. Sob o pretexto injusto de contestarem a qualidade das refeições que lhes eram fartamente servidas no amplo restaurante da empresa, os arruaceiros fizeram desabar aflição e desassossego sobre toda a população. Contida, porém, a irresponsável baderna, duro foi o ajuste de contas: contava papai que muitas centenas de trabalhadores se viram sumariamente despedidos, recebendo o que por lá se conhecia como “descarga” - o bilhete de irreversível dispensa.
Este breve capítulo inicial das memórias que me dispus a compilar, objetiva apenas definir o cenário onde começou a se desenrolar a fieira de minha vida. No dia de Natal de 1931, por conveniências de ambos, mamãe e papai casaram-se por procuração e, vindo residir em Fordlândia, a jovem esposa rapidamente se adaptou às novas circunstâncias. Afinal, tudo ali era novidade, progresso, estimulante fuga do invariável ramerrão itaitubense, onde, de bocejo em bocejo e de fuxico em fuxico, os compridos dias se arrastavam, sem pressa, como se o próprio tempo ficasse meio entorpecido, abobalhado com a paulificante repetição de gestos e palavras. Até as alvoradas e os crepúsculos pareciam ser pintados pelos mesmos anjos, com as mesmas cores de sempre. Até o vento soprava teimosamente na mesma direção.
A súbita quebra da insípida sequência - como pedrada desferida em taça de cristal - era um encanto e uma injeção de entusiasmo na gente tapajônica.
(Emir Bemerguy – ”Enquanto eu me lembro” – 1975)
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