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sexta-feira, 22 de março de 2013

A SABEDORIA DO BARBICHA

 Por Célio Simões, Advogado e membro da Academia Paraense de Jornalismo.  
Há alguns anos em nossa Capital, chamada “Cidade das Mangueiras” pelos que a amam e “Terra do Já Teve” pelos seus detratores, havia uma rede de açougues da SOCIPE, sigla da Sociedade da Indústria Pecuária do Pará, também proprietária da Cooperativa dos Fazendeiros.

Sobre essa Cooperativa, um pouco antes de seu falecimento, meu pai esclareceu que fora a mesma formada muitas décadas atrás; e com o escopo de aumentar inicialmente o número de cooperados, sua diretoria viajou pelo interior do Estado, no início dos anos 20, incentivando a aquisição de cotas pelos criadores de gado, das quais seu pai (e meu avô) Capitão João Anastácio de Souza, dono da Fazenda Nava, no Lago Grande da Franca, acabou adquirindo uma.

A loja da Cooperativa demorava-se à Rua Gaspar Viana, esquina com a Tv. Leão XIII e era uma verdadeira festa para os olhos. Tinha de tudo. Finas louças de porcelana, baixelas de prata, conjuntos inoxidáveis, convivendo harmoniosamente nas prateleiras com requintados tecidos, como tafetás, organdis e chamalotes, passando pelo popular morim e a lona vaqueira com que se tecem as velas das canoas, tão ao gosto da população ribeirinha. Também estavam expostos à venda os equipamentos agrícolas de uso nas fazendas. Enxadas, arames lisos e farpados, ferros de cavar, carrinhos de mão, cordas, machados, facões, selas de couro trabalhadas, tarrafas e redes de dormir, enfim, ali vicejava a harmonia dos contrastes, porque o ambiente era um só, com os produtos à espera dos compradores, a maioria deles vindos da Ilha do Marajó, naqueles idos, a grande responsável pelo abastecimento de carne da população belenense.

Nas incontáveis vezes em que lá estive, encontrava sempre um cão vira lata de olhar fixo no movimento dos açougueiros, de quem recebia entre um e outro atendimento, um rebotalho de carne que habilmente abocanhava no ar, mastigava com sofreguidão e voltava à postura inicial, esperando o próximo pedaço, assim saciando a fome. Dois detalhes diferenciavam aquele cachorro dos demais que rondavam o dito açougue. O primeiro era comportamental, eis que não interferia no movimento dos fregueses, era arredio, de índole pacífica. O segundo dizia respeito à sua extravagante anatomia. Pelagem crestada, porte médio pesando em torno de doze quilos, tinha sob o queixo uma tufo de exuberante pelos marrons que lhe valeu o apelido de “Barbicha”. Certa vez, conversando com os empregados, indaguei melhor sobre os hábitos daquele cão, cuja familiaridade com o estabelecimento o tinha transformado num sortudo ganhador de migalhas com que acalmava o estômago. Pensava eu tratar-se de um animal sem dono, entre as centenas que deambulam pelas grandes cidades revirando lixo. A surpresa foi maior quando a gerente Alda esclareceu que sua dona morava quase em frente, porém, em idade provecta e com a saúde abalada, apelara para a caridade dos açougueiros no sentido de alimentar seu bicho de estimação. Revelou também outro detalhe interessante. Ao atravessar a Conselheiro Furtado em busca de seu alimento diário, o Barbicha o fazia rigorosamente na faixa destinada aos pedestres, somente após o sinal de trânsito ficar vermelho, barrando a passagem dos veículos. Fiquei admirado, porém não contestei a revelação que a ser verídica, colocava aquele animal dito irracional em nível superior a muitos humanos que conheço. Parecia conversa de pescador, porém, munido dessas informações, passei a antecipar minha chegada ao açougue, e constatei que o cão realmente aprendera a respeitar as leis do trânsito. Antes do sinal luminoso fechar, ele ficava sentado na calçada, frente à faixa de pedestres, simplesmente esperando o momento oportuno para alcançar o outro lado.

Como recompensa pela escorreita conduta, toda vez que eu o encontrava na loja da SOCIPE mandava fornecer-lhe alguns gramas de carne “de segunda”, de valor irrisório, incluído na minha conta. Até que um dia ele desapareceu. Comentei o fato e obtive a informação que sua dona falecera, não sem antes rogar a todos os funcionários que não deixassem de alimentar o Barbicha. Mas ele nunca mais voltou. Descobriu-se que fora “adotado” pelo proprietário de uma baiúca de venda de caranguejo, situada na mesma Av. Conselheiro Furtado, porém próxima à Serzedelo Corrêa. Realmente foi lá que o vi, estarrado à entrada do minúsculo espaço, no interior do qual um rádio tocava maravilhas musicais dos anos setenta numa emissora local. Conversando com seu novo dono, contou-me o que eu já sabia. O Barbicha era um cão diferente. Não brigava na rua, não reinava com as pessoas, respeitava os sinais de trânsito, fazia duas refeições por dia e adorava música, ouvindo-as com ar de quem está dissecando cada nota lançada ao ar pelo aparelho de som. E realmente lá estava ele, indiferente ao entra e sai dos fregueses, o olhar perdido no muro do cemitério da Soledade, como se presente ali nem estivesse... 

3 comentários:

  1. Célio, conta algumas do Raimundão Cavalo, o capataz da fazenda do Sr. Chico Lobo, teu pai, pessoa que eu tive a honra de conhecer e visitar a bucólica propriedade dele, no interior da bela Óbidos.
    josé wilson malheiros

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  2. Beleza de crônica, caro confrade (da APJ) Célio Simões. A sensibilidade e a sabedoria do "Barbicha" são realmente notáveis. Seres humanos há que poderiam aprender muito com ele em termos de civilidade, respeito às leis do trânsito e até no trato com seus semelhantes ou diferentes. Fiquei com uma pergunta no ar: será que o "Barbicha" encontrou um novo dono ou terá morrido abandonado em alguma rua da cidade grande ? Terá tido, pelo menos, um enterro decente ?

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  3. Célio, através deste ótimo blog que acesso diariamente, leio e imprimo tuas belas crônicas para que os meus velhos pais as leiam também. Um abraço e aplausos deste ´Chupa Osso` da gema, teu conterrâneo.

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