Por José Wilson Malheiros - membro da Academia Paraense de Letras
Em Santarém eu cantava no Coro da Matriz o Cantochão, as músicas de J.S. Bach, do meu pai e de Palestrina e assistia as inacabáveis cerimônias do lava-pés e as celebrações da sexta feira que me enchiam a imaginação de criança com imagens escabrosas de medo do castigo divino, ainda mais que eram rezadas e cantadas em Latim.
Minha vó Aninhas gostava de frequentar as Vias Sacras. Quando chegava em casa vinha chorosa, em silêncio, contrita.
Na quinta feira santa e na sexta da paixão as pessoas ficavam com cara de enterro, não riam, quase nem conversavam nem saíam de casa, não comiam carne, pois tudo o que fizessem era pecado.
Ninguém reservava com antecedência, nas agências de viagem, as excursões para as praias, onde a bebida, os bacanais e a luxúria profanam com naturalidade tudo o que – para eles - outrora era ou parecia ser sagrado, intocável.
No dia da paixão as crianças não podiam fazer barulho, de maneira nenhuma. Tínhamos que falar baixo, não podíamos jogar bola, nem ligar o rádio, nem rir ou chorar. Quem ousasse desobedecer a essa férrea disciplina era castigado no sábado de aleluia.
Tudo era preparado para nos acachapar com mais do que respeito: um pavor desmedido. Diziam que na sexta feira santa uma procissão de almas desfilava pelas ruas da cidade e ninguém ousava sair de casa ou abrir as janelas.
Era uma religiosidade doentia, agourenta, psicótica, que não distinguia entre criancinhas e velhos para ameaçar com o fogo do inferno ao menor deslize.
Uma verdadeira aberração dos caminhos de amor pregados no Evangelho pelo crucificado e pela alegria profunda que exala das Epístolas do Apóstolo Paulo.
O mais estranho de tudo isso é que o povo assumia essa neurose toda e parecia gostar de ser lambado, humilhado, repreendido.
Ainda me recordo que todo ano, na frente da casa de meu tio Miguel, era montado um altar onde a procissão sempre parava para rezar e escutar o lindo canto da Verônica.
Todos ficavam emocionados quando ela cantava e exibia em público o Santo Sudário com a face do cristo sofredor: mistério, beleza, tristeza, medo.
Mas o tempo passou, chegou a televisão, a internet e as pessoas afastaram-se das coisas sagradas, quer dizer, da maioria dos mitos que nos mantinham no cabresto.
Hoje em dia, apesar dos pesares (nem tudo é maravilhoso, infelizmente), a época da inocência já passou. Sabemos que Deus é liberdade, é amor e não é aquele verdugo cruel pronto a cortar as cabeças ao menor sinal de “desobediência”, nem exige dinheiro para demonstrar que é nosso Pai de verdade.
Nota: Este artigo foi publicado por este blog em março de 2010
A Semana Santa me traz muitas recordações. Os padres vestiam paramentos ritualísticos de cor púrpura. As imagens dos santos, dentro das igrejas, eram escondidas por panos roxos e tudo isso transmitia uma atmosfera de mistério e de pavor.
Na sexta santa o som das matracas parecia lúgubre, como se espalhasse a morte dentro dos templos e nas vias públicas.
Na sexta santa o som das matracas parecia lúgubre, como se espalhasse a morte dentro dos templos e nas vias públicas.
Em Santarém eu cantava no Coro da Matriz o Cantochão, as músicas de J.S. Bach, do meu pai e de Palestrina e assistia as inacabáveis cerimônias do lava-pés e as celebrações da sexta feira que me enchiam a imaginação de criança com imagens escabrosas de medo do castigo divino, ainda mais que eram rezadas e cantadas em Latim.
Minha vó Aninhas gostava de frequentar as Vias Sacras. Quando chegava em casa vinha chorosa, em silêncio, contrita.
Na quinta feira santa e na sexta da paixão as pessoas ficavam com cara de enterro, não riam, quase nem conversavam nem saíam de casa, não comiam carne, pois tudo o que fizessem era pecado.
Ninguém reservava com antecedência, nas agências de viagem, as excursões para as praias, onde a bebida, os bacanais e a luxúria profanam com naturalidade tudo o que – para eles - outrora era ou parecia ser sagrado, intocável.
No dia da paixão as crianças não podiam fazer barulho, de maneira nenhuma. Tínhamos que falar baixo, não podíamos jogar bola, nem ligar o rádio, nem rir ou chorar. Quem ousasse desobedecer a essa férrea disciplina era castigado no sábado de aleluia.
Tudo era preparado para nos acachapar com mais do que respeito: um pavor desmedido. Diziam que na sexta feira santa uma procissão de almas desfilava pelas ruas da cidade e ninguém ousava sair de casa ou abrir as janelas.
Era uma religiosidade doentia, agourenta, psicótica, que não distinguia entre criancinhas e velhos para ameaçar com o fogo do inferno ao menor deslize.
Uma verdadeira aberração dos caminhos de amor pregados no Evangelho pelo crucificado e pela alegria profunda que exala das Epístolas do Apóstolo Paulo.
O mais estranho de tudo isso é que o povo assumia essa neurose toda e parecia gostar de ser lambado, humilhado, repreendido.
Ainda me recordo que todo ano, na frente da casa de meu tio Miguel, era montado um altar onde a procissão sempre parava para rezar e escutar o lindo canto da Verônica.
Todos ficavam emocionados quando ela cantava e exibia em público o Santo Sudário com a face do cristo sofredor: mistério, beleza, tristeza, medo.
Mas o tempo passou, chegou a televisão, a internet e as pessoas afastaram-se das coisas sagradas, quer dizer, da maioria dos mitos que nos mantinham no cabresto.
Hoje em dia, apesar dos pesares (nem tudo é maravilhoso, infelizmente), a época da inocência já passou. Sabemos que Deus é liberdade, é amor e não é aquele verdugo cruel pronto a cortar as cabeças ao menor sinal de “desobediência”, nem exige dinheiro para demonstrar que é nosso Pai de verdade.
Nota: Este artigo foi publicado por este blog em março de 2010
Muito pertinente esta crônica, vinda de um católico fervoroso como meu amigo José Wilson. Mas pena que as igrejas continuem incutindo medo nas pessoas, insistindo sobre a existência do capeta, do fogo do inferno, pregando essa coisa idiota de que Deus fez o homem do barro através de um sopro divino e torcendo o nariz para a evolução da espécie e para a genialidade de Charles Darwin. Galileu Galilei quase morre na fogueira por ter afirmado que a terra girava em torno do Sol e essa verdade só foi reconhecida oficialmente pela igreja 500 anos depois com João Paulo II. Darwin, abominado pelos evangélicos por desfazer a história de caronchinha do criacionismo, está passando pelo mesmo processo de Galileu. Quanto tempo mais será que essa babaquice de criacionismo vai durar? Outros 500 anos? Ademar Amaral
ResponderExcluirCaro Amigo José Wilson
ResponderExcluirExcelente texto. São recordações inesquecíveis de nossa época, vale a pena recordar.
Um grande abraço
Emerildo Bentes Pereira