Para o maior adversário do papa Francisco dentro da Igreja Católica,
a recusa do pontífice em esclarecer pontos de seu controverso documento
sobre o casamento está causando "um grande dano" à milenar instituição.
"Há crescentes confusão e divisão" entre os membros da igreja, laicos ou
não, diz o cardeal americano Raymond Burke, 67 (foto). Principal antípoda
conservador do papa argentino, ele ganhou notoriedade ao liderar o
questionamento do documento "Amoris Laetitia" ("Alegria do Amor", em
latim), publicado em 2016.
Sem resposta, Burke e três colegas tornaram públicas as "dubia" (dúvidas
em latim) enviadas ao papa sobre pontos como a possibilidade de
divorciados morando com companheiros comungarem. Explicitaram o racha na
maior igreja cristã do mundo, com 1,285 bilhão de fiéis.
A controvérsia é apenas a mais pública envolvendo Burke. Ele não
comentou sua relação com o estrategista-chefe do presidente americano
Donald Trump, Stephen Bannon, sobre a qual há especulações que vão de
coincidência de visão de mundo a uma conspiração contra o papa.
Recentemente, disse não se lembrar de Bannon.
Folha - O sr. ainda acha que o papa deveria responder às "dubia"? Qual o problema que a falta de resposta causou?
Raymond Burke - Sim, eu acho que é essencial que o Santo Padre responda a
essas questões, que dizem respeito aos ensinamentos fundamentais da
igreja acerca do casamento, da família e da lei moral. É evidente que um
grande dano já foi causado pela sua falha em responder. Há crescentes
confusão e divisão entre as conferências de bispos, bispos
individualmente, padres e os fiéis laicos.
O que levou o sr. e os outros três cardeais a tornarem as "dubia" públicas?
As "dubia" foram propostas ao Santo Padre e também copiadas para a
Congregação da Doutrina da Fé, que lida com as questões doutrinárias
importantes. A resposta da congregação foi a de que não deveria haver
resposta. Por isso, como vários fiéis estavam confusos, nós quatro
julgamos necessário informá-los de que havíamos feito essas questões e
que esperávamos resposta.
Há críticos que dizem que o sr. e os coautores das "dubia" cometeram
uma ofensa ao torná-las públicas. O monsenhor italiano Pio Vito Pinto,
autoridade judicial do Vaticano, disse que o sr. deveria ser punido. O
sr. teme alguma represália?
O que fizemos foi um método clássico na igreja para receber, da mais
alta autoridade pastoral, orientação sobre importantes questões. Então,
não havia nada desrespeitoso. Na verdade, foi um sinal de respeito
extremo, pois procuramos o Santo Padre para responder. Temos nosso dever
como cardeais, então não vamos perder tempo imaginando se haverá
represálias. E certamente o que fizemos não foi nenhum pecado ou ato
criminal que merecesse punição.
Sobre a controvérsia da Ordem de Malta, o sr. apoiou a demissão do
oficial Albrecht von Boeslager em encontro com o grão-mestre em dezembro
passado? Se sim, o sr. consultou o Vaticano sobre isso?
Durante o encontro, eu simplesmente insisti que aqueles investidos de
autoridade, que eram responsáveis pela escandalosamente grave prática de
distribuir contraceptivos, deveriam ser responsabilizados. O ato do
grão-mestre de pedir a demissão de Von Boeselager foi baseado em um
relatório formal de uma comissão de inquérito, que fez longa
investigação. Publicou seus achados em janeiro de 2016. Ninguém
contestou publicamente o relatório, no qual a gravidade da prática
imoral é clara, assim como é bem claro quem eram os responsáveis. Assim,
como consultor espiritual da ordem, insisti para que a ação apropriada
fosse tomada.
Alguns observadores notam a resistência dos tradicionalistas na
igreja a alguns pontos defendidos pelo papa Francisco. Quais são as
preocupações desses tradicionalistas?
Eu diria simplesmente que é preciso fazer distinção entre as posições
que o Santo Padre assume como pastor supremo da igreja, e portanto
participante do magistério que nós aceitamos e seguimos, e as posições
do homem que é o papa, mas que ele não assume em virtude de seu ofício.
Assim, o Santo Padre pode ter uma série de opiniões acerca dos mais
variados assuntos que não entram no magistério de forma alguma. Eu acho
que há uma tendência de confundir esses dois tipos de declarações,
devido ao fato de que nós não estávamos acostumados com um papa que
expressasse suas opiniões tão frequentemente e em tão variadas mídias.
Em sua opinião, qual deve ser a posição católica em relação aos protestantes e às comunidades não católicas?
Entre as várias comunidades eclesiais que professam a fé cristã, nós
buscamos estar em diálogo na esperança de que cada vez mais a plenitude
que Cristo queria para sua igreja seja reconhecido e encontrada na
Igreja Católica.
Sobre os não cristãos, é uma questão de testemunhar que Cristo é o único
salvador do mundo. Então, a igreja quer estar em comunicação com as
pessoas de boa vontade, mas sempre fundada na honestidade acerca do que
nós acreditamos.
Qual é sua visão para a Igreja Católica no século 21, com todas as divisões e discordâncias sobre o caminho a tomar?
O santo João Paulo 2º escreveu em sua carta apostólica na conclusão do
Ano do Jubileu (2000) que Jesus Cristo está vivo na igreja. Ele vem a
nós por meio da tradição apostólica ininterrupta.
Assim, minha esperança para o futuro é simplesmente num ensinamento mais
coerente, mais efetivo, das verdades da fé que Cristo nos deu. Uma vida
de oração e de liturgia que nos faça mais e mais visíveis aos atos de
Cristo na igreja, especialmente por meio dos sacramentos.
Daí, é claro, que os católicos tenham maior coerência com sua fé na vida
cotidiana. No caso do Brasil, eu gostaria de enfatizar particularmente a
renovação da catequese, da sagrada liturgia.