Por Heitor e Sílvia Reali - Estadão
Prato mais simples nesse mundo não havia. Era só apanhar o fruto da
cuieira, separar em duas bandas, e estava pronto o prato! O mais fundo
era perfeito para o mingau dos curumins, já os largos acomodavam bem os
beijus. Mas, ahh! E o capricho das índias ia deixar a ‘baixela’ nessa
simpleza desenfeitada? Qual o quê! As indígenas recobriam as cuias com
um sem fim de traços em espirais, semicírculos, labirintos, e padrões
retirados da natureza.
Viajo ao Pará a fim de saber mais sobre as cuias das índias da região
de Santarém, e que hoje continuam sendo feitas pelas artesãs dali. No
movimentado porto da cidade, sigo numa espécie de barco-circular que vai
parando em diversas comunidades banhadas pelo Rio Tapajós.
O
modo de fazer cuias foi reconhecido pelo IPHAN como Patrimônio Cultural
do Brasil, e as artesãs preocupadas com a preservação replantam
constantemente a cuieira.
De volta a Aritapera, mergulho minha cuia naquela água cor de mel cristalizado, e de temperatura reconfortante. No banho refresco corpo e alma. Chega meu onibus-barco, me despeço das artesãs e sigo viagem. Agora, de mala e cuia!
Contato da Asarisan, a Associação das Artesãs de Santarém: artesanatoribeirinho@yahoo.com.br
Acompanhe os autores também no Viramundo e Mundovirado, no facebook
O sol já vai se pondo quando chego em Aritapera, onde Cecília minha
anfitriã me aguarda diante de sua casa palafita. A artesã me apresenta o
lugar: “no período chuvoso quando as águas do rio sobem, até para ir na
vizinha preciso usar o barco, em compensação dá de pescar da janela”. O
jirau onde ela e suas amigas se reúnem para pintar as cuias também é
apoiado em pilotis, assim como a pequena horta de tempêros e o
galinheiro.
No cadenciado falar caboclo, as artesãs vão me contando sobre as cuias:
“Elas servem “para um tudo”: tirar água dos barcos, tomar banho no rio,
cozinhar, armazenar água, e ainda de copo ou prato, como no caso do
tacacá, iguaria feita da goma de mandioca, tucupi, camarão e folhas de
jambu.
“O mais bacana é que a árvore da cuieira produz frutos de formatos
diversos que batizamos com nomes de: peixe-boi, a maior delas e ideal
para fruteiras; maracá, utilizada para copos ou vasos; comprida que dá
boas travessas; e da pequena cutita, são feitos copinhos”, conclui a
artesã Marta.
O falatório recai agora sobre a elaboração das cuias “feitas do mesmo
jeitinho que as índias faziam: serramos ao meio os frutos, retiramos o
miolo, com escamas de pirarucu lixamos as peças, e os desenhos são
riscados a faca ou canivete”. Fico sabendo também que da casca do
axuazeiro é feito o cumatê, um corante natural. Este grupo de artesãs de
Aritapera só trabalha com motivos florais influenciados pela louça de
faiança trazida pelos colonizadores europeus.
De Aritapera sigo agora a bordo de pequeno barco em direção ao vilarejo
de Cabeça d’Onça. Nos caminhos aquáticos sou surpreendida vez ou outra
pelos saltos de botos cor-de-rosa, ou do cinza tucuxi. Ali vou me reunir
com as artesãs das distantes comunidades de Surubim-Acú e Carapanatuba
que decoram as cuias com grafismos indígenas, e mais a criatividade de
cada uma.
Em Cabeça d’Onça, mulheres alegres e de todas as idades que enfrentaram
mais de cinco horas de viagem de barco estão me esperando na varandona
da casa da artesã Maria Durvalina. Elas me revelam que o ofício reúne
quase 200 famílias, é muito importante para a contribuição de renda, que
repassam o saber para as mais jovens, e enviam as cuias para serem
vendidas no Mercado de Santarém e nas lojas de artesanato de Belém.
De volta a Aritapera, mergulho minha cuia naquela água cor de mel cristalizado, e de temperatura reconfortante. No banho refresco corpo e alma. Chega meu onibus-barco, me despeço das artesãs e sigo viagem. Agora, de mala e cuia!
Contato da Asarisan, a Associação das Artesãs de Santarém: artesanatoribeirinho@yahoo.com.br
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