Editorial- Estadão
O exercício da magistratura exige cuidadoso bom senso, já que sua lavra produz graves, e às vezes indeléveis, efeitos. Válida em todos os países, a necessidade da prudência do juiz é ainda mais evidente no caso do Brasil, por ter uma Constituição que, a depender dos olhos com os quais é lida, autoriza uma atuação judicial muito além do que recomenda a separação dos Poderes. Exemplo de evidente incursão do Poder Judiciário em seara alheia deu-se no caso da liminar, expedida no dia 25 de julho pelo juiz federal substituto da 20.ª Vara Federal do Distrito Federal, Renato Borelli, suspendendo os efeitos do Decreto 9.101/2017, que aumentou as alíquotas do PIS e Cofins para a gasolina, o diesel e o etanol. O decreto faz parte do empenho do governo em cumprir a meta fiscal deste ano.
Sob a argumentação de que “a arrecadação estatal não pode representar a perda de algum Direito Fundamental, não podendo haver, portanto, uma aporia entre a necessidade de arrecadação e os direitos fundamentais constitucionais do cidadão”, o juiz determinou a imediata suspensão dos efeitos do decreto. O magistrado reconheceu a existência de fundamento legal para o decreto presidencial, mas julgou que o aumento das alíquotas do PIS e Cofins violaria a Constituição. “Não pode o governo federal, sob a justificativa da arrecadação, violar a Constituição Federal, isto é, violar os princípios constitucionais, que são os instrumentos dos direitos humanos”, escreveu o juiz.
A decisão teve vida curta. Na quarta-feira passada, atendendo a recurso da Advocacia-Geral da União (AGU), o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1.ª Região derrubou a liminar, por reconhecer que ela causava “grave lesão à ordem pública, jurídica, administrativa e econômica”. Estima-se que a suspensão dos efeitos do Decreto 9.101/2017 representou um prejuízo diário ao governo federal de R$ 78 milhões.
Na decisão, o desembargador Hilton José Gomes de Queiroz, presidente do tribunal, fez um apelo à prudência. “Com efeito, é intuitivo que, no momento ora vivido pelo Brasil, de exacerbado desequilíbrio orçamentário, quando o governo trabalha com o bilionário déficit, decisões judiciais, como a que ora se analisa, só servem para agravar as dificuldades da manutenção dos serviços públicos e do funcionamento do aparelho estatal, abrindo brecha para um completo descontrole do país e até mesmo seu total desgoverno”, escreveu o desembargador.
De fato, a prevalecer a interpretação do juiz substituto da 20.ª Vara Federal do Distrito Federal, o Poder Executivo estaria impedido de governar o País, com o Poder Judiciário fixando as políticas públicas. A Constituição de 1988, com sua vastidão de promessas e boas intenções, exige uma leitura cuidadosa, que preserve o caráter sistêmico do Direito. Longe de representar uma efetividade das garantias individuais e sociais, uma interpretação ao pé da letra inviabilizaria o próprio Estado, além de desrespeitar princípios básicos do Estado Democrático de Direito, como a separação dos Poderes e a representação popular. Afinal, cabe aos representantes do povo, escolhidos pelo voto, definir as políticas públicas, e não aos juízes, que não foram escolhidos pela população e sim nomeados depois de prestarem concurso de provas e títulos. O papel da magistratura é justamente assegurar respeito ao caráter sistêmico do Direito e não o de subvertê-lo.
Com razão, o desembargador Hilton José Gomes de Queiroz notou que a liminar suspendendo o aumento das alíquotas do PIS e Cofins gerava uma lesão à ordem administrativa, “interferindo de maneira absolutamente sensível na separação de poderes, usurpando competência legitimamente concedida ao Poder Executivo (art. 84 da Constituição Federal)”. O respeito à ordem administrativa é muito mais que mero cumprimento de determinada norma procedimental. Ele assegura que o poder seja exercido por quem tenha direito de exercê-lo. E foi exatamente isso o que o TRF da 1.ª Região restabeleceu – os institucionais e democráticos caminhos do poder.
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