Por Janio de Freitas - Folha de SP
A decisão de tornar mais difíceis a caracterização e a punição do trabalho semiescravo ou análogo à escravidão origina-se em um desprezo sórdido pelo sofrimento alheio, pela própria desgraça humana. Não foi o suficiente para dispensar um agravante: esse ato de torpeza absoluta é em benefício próprio, comprovando uma indignidade pessoal só possível no mais baixo nível da escala humana. O de Michel Temer e sua decisão para assegurar-se mais votos da bancada ruralista, contra o processo criminal que o ameaça.
ELA E ELE
A ministra Cármen Lúcia, tudo indica, foi a personagem mais citada pelos revoltados com a volta de Aécio Neves ao Senado. O "cala a boca já morreu" dos senadores não precisou omitir o complemento, como o de Cármen Lúcia, que pressentidamente omitiu em voto passado o "quem manda aqui sou eu". Até prova em contrário, se houver quem a dê, manda o Senado. Sejam quais forem as deduções que o Supremo faça da sua experiência de emudecido por 44 senadores, é improvável que aborde, mesmo de raspão, um ponto essencial no presente episódio.
Dentre os desencontros do Brasil atual, o dos magistrados tem a importância própria da função. Os desempates e quase empates tornam-se mais frequentes e incidem sobre causas de relevância especial, nas circunstâncias de divergência generalizada. O voto de Minerva —essa deusa esquisita, adaptação romana da grega Atena, com atenções contraditórias nas artes e no comércio— teve adoção recente em três julgamentos de temas influentes na vida nacional. Dois deles, só na primeira quinzena deste mês.
Por 6 a 5, portanto com o voto de Minerva de Cármen Lúcia, o Supremo tomou a polêmica decisão de ampliar o alcance da Lei da Ficha Limpa. Incluiu no impedimento de candidaturas atos anteriores à lei, quando se tem como princípio do direito brasileiro, e não só dele, que a lei não retroage. Essa decisão tem influência grande na preparação partidária de eleições, em reeleições parlamentares e em candidaturas novas.
No Tribunal Superior Eleitoral, os trabalhos e discussões em torno da última campanha de Dilma-Temer atravessaram dois anos. Duas nomeações de ministros novos, feitas por Temer, levaram com facilidade ao empate. Logo, ao voto de Minerva. De quem? Gilmar Mendes, de posição já conhecida por entrevistas suas, como pela apontada assessoria a Temer.
Agora, com novo 6 a 5, resultado do voto de Minerva outra vez de Cármen Lúcia, acrescenta-se à crise mais um tempero forte, com a oposição Senado/Supremo. É insensato que causas assim graves sejam decididas por um voto. O de Minerva é multimilenar, sendo o nome latino de um voto no que teria sido o primeiro julgamento formal —de um Orestes com menos sorte do que o enriquecido homônimo paulista. Mas o tempo não é habeas corpus contra reflexões e reconsiderações.
Já feitas, por sinal, onde menos seriam esperáveis. Levantamentos recentes sobre os grupos de Fernandinho Beira-mar, Nem, Marcola e outros têm impressionado por sua organização, mas, sobretudo, pela inteligência e criatividade nela presentes. Decisões maiores (e julgamentos em certos casos), por exemplo, são definidas por conjunto de opiniões. Número ímpar de opinantes, portanto, para o eventual voto de Minerva. Não, não. Número par. Por uma percepção extraordinária: se há empate, o assunto não está em ponto de decisão, precisa ser estudado outra vez. Tão lógico, tão simples, tão verdadeiro. E tão forte para derrubar uma pretensa sabedoria histórica.
O voto de Minerva é uma excrescência: assume o poder de decisão absoluto, na invalidade mútua de todos os demais, não importam o saber, a lucidez e a integridade de quem decide. Ainda antes da era falsamente cristã, o persa Cambises preocupou-se com julgamentos inconvincentes. Ocorrido mais um, demitiu o juiz, que desapareceu. Ao assumir, o substituto recebeu uma informação: o seu assento está forrado com a pele do juiz que errou.
A solução talvez seja um pouco exagerada, mesmo para estes dias de furiosos. Mas Minerva, com tantos anos e culpas nas costas, precisa descansar.
A decisão de tornar mais difíceis a caracterização e a punição do trabalho semiescravo ou análogo à escravidão origina-se em um desprezo sórdido pelo sofrimento alheio, pela própria desgraça humana. Não foi o suficiente para dispensar um agravante: esse ato de torpeza absoluta é em benefício próprio, comprovando uma indignidade pessoal só possível no mais baixo nível da escala humana. O de Michel Temer e sua decisão para assegurar-se mais votos da bancada ruralista, contra o processo criminal que o ameaça.
ELA E ELE
A ministra Cármen Lúcia, tudo indica, foi a personagem mais citada pelos revoltados com a volta de Aécio Neves ao Senado. O "cala a boca já morreu" dos senadores não precisou omitir o complemento, como o de Cármen Lúcia, que pressentidamente omitiu em voto passado o "quem manda aqui sou eu". Até prova em contrário, se houver quem a dê, manda o Senado. Sejam quais forem as deduções que o Supremo faça da sua experiência de emudecido por 44 senadores, é improvável que aborde, mesmo de raspão, um ponto essencial no presente episódio.
Dentre os desencontros do Brasil atual, o dos magistrados tem a importância própria da função. Os desempates e quase empates tornam-se mais frequentes e incidem sobre causas de relevância especial, nas circunstâncias de divergência generalizada. O voto de Minerva —essa deusa esquisita, adaptação romana da grega Atena, com atenções contraditórias nas artes e no comércio— teve adoção recente em três julgamentos de temas influentes na vida nacional. Dois deles, só na primeira quinzena deste mês.
Por 6 a 5, portanto com o voto de Minerva de Cármen Lúcia, o Supremo tomou a polêmica decisão de ampliar o alcance da Lei da Ficha Limpa. Incluiu no impedimento de candidaturas atos anteriores à lei, quando se tem como princípio do direito brasileiro, e não só dele, que a lei não retroage. Essa decisão tem influência grande na preparação partidária de eleições, em reeleições parlamentares e em candidaturas novas.
No Tribunal Superior Eleitoral, os trabalhos e discussões em torno da última campanha de Dilma-Temer atravessaram dois anos. Duas nomeações de ministros novos, feitas por Temer, levaram com facilidade ao empate. Logo, ao voto de Minerva. De quem? Gilmar Mendes, de posição já conhecida por entrevistas suas, como pela apontada assessoria a Temer.
Agora, com novo 6 a 5, resultado do voto de Minerva outra vez de Cármen Lúcia, acrescenta-se à crise mais um tempero forte, com a oposição Senado/Supremo. É insensato que causas assim graves sejam decididas por um voto. O de Minerva é multimilenar, sendo o nome latino de um voto no que teria sido o primeiro julgamento formal —de um Orestes com menos sorte do que o enriquecido homônimo paulista. Mas o tempo não é habeas corpus contra reflexões e reconsiderações.
Já feitas, por sinal, onde menos seriam esperáveis. Levantamentos recentes sobre os grupos de Fernandinho Beira-mar, Nem, Marcola e outros têm impressionado por sua organização, mas, sobretudo, pela inteligência e criatividade nela presentes. Decisões maiores (e julgamentos em certos casos), por exemplo, são definidas por conjunto de opiniões. Número ímpar de opinantes, portanto, para o eventual voto de Minerva. Não, não. Número par. Por uma percepção extraordinária: se há empate, o assunto não está em ponto de decisão, precisa ser estudado outra vez. Tão lógico, tão simples, tão verdadeiro. E tão forte para derrubar uma pretensa sabedoria histórica.
O voto de Minerva é uma excrescência: assume o poder de decisão absoluto, na invalidade mútua de todos os demais, não importam o saber, a lucidez e a integridade de quem decide. Ainda antes da era falsamente cristã, o persa Cambises preocupou-se com julgamentos inconvincentes. Ocorrido mais um, demitiu o juiz, que desapareceu. Ao assumir, o substituto recebeu uma informação: o seu assento está forrado com a pele do juiz que errou.
A solução talvez seja um pouco exagerada, mesmo para estes dias de furiosos. Mas Minerva, com tantos anos e culpas nas costas, precisa descansar.
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