Por Cida Damasco - Estadão
Hoje vou emprestar minha coluna para a Cecília*, de 47 anos. Ela é uma das mulheres vítimas de violência diariamente no Brasil. É uma das milhares de mulheres que ao buscar ajuda não encontram acolhida - se deparam com ainda mais violência. Entender a dimensão da violência contra a mulher é urgente e diz respeito a todos - homens e mulheres. O texto a seguir aborda violência contra a mulher.
Eu tinha muito medo de contar a minha história. Mas hoje o medo acabou. Mesmo que meu depoimento seja apenas mais um nesse universo, é importante que ele seja feito. Para que encoraje outras mulheres a abrir a boca e pedir ajuda. Antes de mais nada, quero dizer para elas que não são culpadas pelo comportamento do companheiro. Hoje, quando eu falo sobre isso, a sensação que tenho é de que não aconteceu comigo. Não consigo me ver nessa situação, que vai contra tudo o que eu sempre aprendi e acreditei.
Meu nome é Cecília, moro no Rio, tenho 47 anos, duas filhas, uma de 24 anos e outra de 7, e estou saindo de um relacionamento abusivo que durou 11 anos. Em 2005, eu já estava separada do meu primeiro marido, quando conheci Roberto, paraquedista aguardando reforma, 9 anos mais novo do que eu. Éramos colegas em um curso de técnica em radiologia, acabamos nos apaixonando e, seis meses depois, fomos morar juntos. Eu já tinha uma filha do primeiro casamento e ele tinha três. Sem traumas da primeira separação, que foi resultado de uma decisão harmoniosa, eu me abri totalmente para essa nova relação.
Hoje eu reconheço que ele já demonstrava um controle exagerado sobre minhas roupas, meus horários de trabalho, sobre minha vida, enfim. Mas, como nunca tinha vivido uma situação parecida, acreditava que isso era um sinal de que ele me amava demais. Até que comecei a me assustar com algumas manifestações de violência. Uma vez, ele recebeu uma ligação da ex-mulher e quando eu quis saber quem era, atirou o telefone contra a parede, Mas logo em seguida pediu desculpas e disse que isso não iria se repetir. Só que a situação não só não melhorou como se agravou. Nós dois fomos fazer faculdade, ele de Administração e eu de Psicologia. Mas, como ele trancou matrícula e eu continuei a estudar, as crises de ciúmes e as brigas ficaram mais constantes.
Em 2011, pensei em me separar do Roberto, mas fui surpreendida por uma gravidez e acabei desistindo dessa ideia. As pessoas à minha volta me desestimulavam: "Todo casal briga", diziam uns. "Você vai se separar de novo?", perguntavam outros. "Dê uma chance para seu casamento". Tive uma gravidez péssima, ele gritava comigo por qualquer motivo, embora não me agredisse fisicamente. Quando eu dizia que iria denunciar as agressões, ele reagia demonstrando sensação de impunidade: "Você está maluca. Quem vai prender um PQD ( paraquedista) ?"
Cada briga dessas era sucedida por uma tentativa de reconciliação. "Não quero te perder, vou para a igreja (sou evangélica) com você." Minha filha mais velha e o pai dela pediam seguidamente para eu me separar, mas eu resistia. Me sentia envergonhada, culpada, procurava em mim mesma as razões para o comportamento dele. Será que eu me arrumava demais? Será que eu não dava atenção para ele?
Ele subia o tom das ameaças: "Você não sabe do que eu sou capaz." Eu sentia muito medo, porque ele já tinha uma condenação por agressão à mãe de um dos filhos e me ameaçava. "Com você faço pior." No dia em que minha filha completou um mês, fiz meu primeiro boletim de ocorrência (BO). Fiz outro depois. A situação estava insustentável. A cada briga, era expulsa de casa, xingada e humilhada: "Você não me satisfaz, tenho mulheres muito melhores." Em uma dessas muitas brigas, acabei indo ao Fórum para pedir uma medida protetiva contra ele. Mas recuei. Não tinha para onde ir e a juíza me alertou que não podia pôr um policial na porta da minha casa o tempo todo.
Voltei para casa e continuei sofrendo agressões. Até que, numa noite de março de 2017, quando voltei da faculdade, encontrei tudo quebrado dentro de casa, minhas roupas e meus objetos rasgados e molhados. Liguei para a polícia, mas ela estava em greve e não havia condições de atender um chamado para separar briga de casal. Depois de 4 horas de gritos e pedidos de socorro a quem passasse na rua, minha mãe chegou em casa e conseguiu que ele entregasse uma faca e um pedaço de pau que havia separado para me bater. Minha filha menor ficou rouca de tanto implorar para ele parar.
Foi o ponto final. Decidi naquele dia que minhas filhas não iriam mais passar por esse sofrimento. Um mês depois, saí de casa e fui morar com as duas numa quitinete. Sempre com muito medo e com a sensação de que não havia ninguém no mundo em condições de me defender.
Em janeiro deste ano mandei correspondência para tudo e todos contando minha história -- Corregedoria da Polícia Militar, Ouvidoria da Polícia, Ministério Público. etc -- e, para minha surpresa, recebi várias respostas. Mesmo dos órgãos que não tinham condições de adotar providências concretas. A mensagem geral era "estamos solidários com você".
Em fevereiro deste ano, depois de um novo episódio de ameaças, dessa vez por telefone, fui à Delegacia da Mulher para fazer outro BO. Sob orientação do Ministério Público, ao qual eu havia enviado uma das cartas, a policial que me atendeu solicitou, ela mesma, uma medida protetiva à Justiça. Apenas dois dias depois, a medida foi concedida. Na Delegacia da Mulher, essa policial me fez ver que eu adiei muito minha decisão de romper a relação e pedir proteção. "Você estava esperando o que, um milagre?", ela me questionou.
Ele continua me perseguindo indiretamente, mas não se aproximou mais de mim, fisicamente. O pior é que acha que quem saiu ferido foi ele. Hoje me pergunto: Por que não larguei dele antes? Por que não denunciei antes? A verdade é que você não tem força e não vê saída. Acha que ninguém tem condições de te defender.
Agora o medo acabou. Percebi que no momento em que você resolve falar, recebe ajuda. Estou bem, trabalho como psicóloga em três clínicas, continuo morando na quitinete com minha filha menor, que precisa de acompanhamento psicológico por ter acompanhado de perto todo o meu sofrimento. Minha filha mais velha já casou. Vivo com poucos recursos, mas com qualidade e saúde mental. E vou continuar falando.
Hoje vou emprestar minha coluna para a Cecília*, de 47 anos. Ela é uma das mulheres vítimas de violência diariamente no Brasil. É uma das milhares de mulheres que ao buscar ajuda não encontram acolhida - se deparam com ainda mais violência. Entender a dimensão da violência contra a mulher é urgente e diz respeito a todos - homens e mulheres. O texto a seguir aborda violência contra a mulher.
Eu tinha muito medo de contar a minha história. Mas hoje o medo acabou. Mesmo que meu depoimento seja apenas mais um nesse universo, é importante que ele seja feito. Para que encoraje outras mulheres a abrir a boca e pedir ajuda. Antes de mais nada, quero dizer para elas que não são culpadas pelo comportamento do companheiro. Hoje, quando eu falo sobre isso, a sensação que tenho é de que não aconteceu comigo. Não consigo me ver nessa situação, que vai contra tudo o que eu sempre aprendi e acreditei.
Meu nome é Cecília, moro no Rio, tenho 47 anos, duas filhas, uma de 24 anos e outra de 7, e estou saindo de um relacionamento abusivo que durou 11 anos. Em 2005, eu já estava separada do meu primeiro marido, quando conheci Roberto, paraquedista aguardando reforma, 9 anos mais novo do que eu. Éramos colegas em um curso de técnica em radiologia, acabamos nos apaixonando e, seis meses depois, fomos morar juntos. Eu já tinha uma filha do primeiro casamento e ele tinha três. Sem traumas da primeira separação, que foi resultado de uma decisão harmoniosa, eu me abri totalmente para essa nova relação.
Hoje eu reconheço que ele já demonstrava um controle exagerado sobre minhas roupas, meus horários de trabalho, sobre minha vida, enfim. Mas, como nunca tinha vivido uma situação parecida, acreditava que isso era um sinal de que ele me amava demais. Até que comecei a me assustar com algumas manifestações de violência. Uma vez, ele recebeu uma ligação da ex-mulher e quando eu quis saber quem era, atirou o telefone contra a parede, Mas logo em seguida pediu desculpas e disse que isso não iria se repetir. Só que a situação não só não melhorou como se agravou. Nós dois fomos fazer faculdade, ele de Administração e eu de Psicologia. Mas, como ele trancou matrícula e eu continuei a estudar, as crises de ciúmes e as brigas ficaram mais constantes.
Em 2011, pensei em me separar do Roberto, mas fui surpreendida por uma gravidez e acabei desistindo dessa ideia. As pessoas à minha volta me desestimulavam: "Todo casal briga", diziam uns. "Você vai se separar de novo?", perguntavam outros. "Dê uma chance para seu casamento". Tive uma gravidez péssima, ele gritava comigo por qualquer motivo, embora não me agredisse fisicamente. Quando eu dizia que iria denunciar as agressões, ele reagia demonstrando sensação de impunidade: "Você está maluca. Quem vai prender um PQD ( paraquedista) ?"
Cada briga dessas era sucedida por uma tentativa de reconciliação. "Não quero te perder, vou para a igreja (sou evangélica) com você." Minha filha mais velha e o pai dela pediam seguidamente para eu me separar, mas eu resistia. Me sentia envergonhada, culpada, procurava em mim mesma as razões para o comportamento dele. Será que eu me arrumava demais? Será que eu não dava atenção para ele?
Ele subia o tom das ameaças: "Você não sabe do que eu sou capaz." Eu sentia muito medo, porque ele já tinha uma condenação por agressão à mãe de um dos filhos e me ameaçava. "Com você faço pior." No dia em que minha filha completou um mês, fiz meu primeiro boletim de ocorrência (BO). Fiz outro depois. A situação estava insustentável. A cada briga, era expulsa de casa, xingada e humilhada: "Você não me satisfaz, tenho mulheres muito melhores." Em uma dessas muitas brigas, acabei indo ao Fórum para pedir uma medida protetiva contra ele. Mas recuei. Não tinha para onde ir e a juíza me alertou que não podia pôr um policial na porta da minha casa o tempo todo.
Voltei para casa e continuei sofrendo agressões. Até que, numa noite de março de 2017, quando voltei da faculdade, encontrei tudo quebrado dentro de casa, minhas roupas e meus objetos rasgados e molhados. Liguei para a polícia, mas ela estava em greve e não havia condições de atender um chamado para separar briga de casal. Depois de 4 horas de gritos e pedidos de socorro a quem passasse na rua, minha mãe chegou em casa e conseguiu que ele entregasse uma faca e um pedaço de pau que havia separado para me bater. Minha filha menor ficou rouca de tanto implorar para ele parar.
Foi o ponto final. Decidi naquele dia que minhas filhas não iriam mais passar por esse sofrimento. Um mês depois, saí de casa e fui morar com as duas numa quitinete. Sempre com muito medo e com a sensação de que não havia ninguém no mundo em condições de me defender.
Em janeiro deste ano mandei correspondência para tudo e todos contando minha história -- Corregedoria da Polícia Militar, Ouvidoria da Polícia, Ministério Público. etc -- e, para minha surpresa, recebi várias respostas. Mesmo dos órgãos que não tinham condições de adotar providências concretas. A mensagem geral era "estamos solidários com você".
Em fevereiro deste ano, depois de um novo episódio de ameaças, dessa vez por telefone, fui à Delegacia da Mulher para fazer outro BO. Sob orientação do Ministério Público, ao qual eu havia enviado uma das cartas, a policial que me atendeu solicitou, ela mesma, uma medida protetiva à Justiça. Apenas dois dias depois, a medida foi concedida. Na Delegacia da Mulher, essa policial me fez ver que eu adiei muito minha decisão de romper a relação e pedir proteção. "Você estava esperando o que, um milagre?", ela me questionou.
Ele continua me perseguindo indiretamente, mas não se aproximou mais de mim, fisicamente. O pior é que acha que quem saiu ferido foi ele. Hoje me pergunto: Por que não larguei dele antes? Por que não denunciei antes? A verdade é que você não tem força e não vê saída. Acha que ninguém tem condições de te defender.
Agora o medo acabou. Percebi que no momento em que você resolve falar, recebe ajuda. Estou bem, trabalho como psicóloga em três clínicas, continuo morando na quitinete com minha filha menor, que precisa de acompanhamento psicológico por ter acompanhado de perto todo o meu sofrimento. Minha filha mais velha já casou. Vivo com poucos recursos, mas com qualidade e saúde mental. E vou continuar falando.
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