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quinta-feira, 31 de maio de 2018

A cabeça do brasileiro é paradoxal mesmo?

Por Fernando Dantas, jornalista - Estadão
A pesquisa do instituto Datafolha divulgada hoje mostra que 87% dos brasileiros são a favor da greve dos caminhoneiros e, coincidentemente, a mesma proporção é contra os aumentos de impostos e cortes de gastos propostos pelo governo para bancar as reinvindicações da categoria.

De certa forma, esse resultado é um pesadelo para quem defende a racionalidade centrista como único caminho para o País sair da atual crise. O Brasil parece estar criando uma aberrante síntese dos populismos de direita e de esquerda em voga no mundo: rejeição total ao aumento de impostos combinada com demandas cada vez maiores de gastos do Estado com grupos de pressão específicos, apoiadas por todos outros grupos de pressão e pela sociedade em geral.

Para confundir ainda mais as coisas, houve um claro apoio de segmentos sociais identificados com a candidatura de Jair Bolsonaro ao movimento grevista. O próprio candidato, com idas e vindas, deu seu suporte aos caminhoneiros. A contradição é o fato de os supostos defensores da ordem apoiarem um movimento que provocou o maior caos no País em muitas décadas, e utilizando métodos ilegais, como decidir quem passa e quem não passa por pontos de estrangulamento (com utilização dos próprios caminhões) em rodovias Brasil afora.

O movimento atual ecoa as preocupações que alguns analistas já demonstravam em relação às manifestações de junho de 2013: a população pedia simultaneamente mais e melhores serviços públicos e menos receita pública (de tarifas de ônibus a impostos).

Qual será a visão de mundo por trás dessa aparente contradição entre demandas obviamente irreconciliáveis?

Uma primeira possível explicação seria a de que uma grande parte da população com educação precária não percebe que todo gasto público é financiado pelo conjunto da sociedade. Favoreceria essa percepção o fato de que apenas uma minoria relativamente pequena dos brasileiros paga Imposto de Renda, no qual o financiamento do Estado pelo cidadão fica didaticamente explícito, enquanto a maioria da população é taxada via impostos indiretos sem nenhuma transparência.

Mas o que se percebe mais claramente no discurso virulento das redes sociais é a revolta em relação a pagar impostos para financiar um sistema político podre de corrupção. É como se o brasileiro médio julgasse que há recursos abundantes para o Estado brasileiro funcionar bem, prover serviços de qualidade em larga escala e investir numa moderna infraestrutura logística e urbana, e tudo isto só não acontece porque quase todo o dinheiro é roubado pelos políticos.

Se essa é a percepção, começa a fazer sentido o apoio maciço à greve dos caminhoneiros. Afinal, o cidadão médio, junto com os caminhoneiros, faz parte do “povo”, cujo dinheiro é roubado por um conluio entre o sistema político e outros membros das elites, como juízes privilegiados e empresários corruptos. Assim, seria até nobre suportar os sacrifícios provocados pela greve dos caminhoneiros, em nome de atacar e tentar derrubar a clique que fica com todo o dinheiro, e impede que o Brasil tenha bons e completos serviços públicos, além de uma infraestrutura que garanta uma cidadania digna para todos.

Qualquer pessoa que entenda minimamente os dilemas de política pública do Brasil atual sabe que a visão acima está absurdamente errada. A corrupção é de fato um grande problema e rouba recursos que poderiam ser usados para o bem-estar geral, mas é apenas uma parte muito pequena e quase irrelevante do rombo fiscal estrutural que destrói qualquer chance de o Brasil se desenvolver a um ritmo satisfatório e de maneira sustentada.

Na verdade, a insolvência estrutural do setor público deve-se à complacência e à cumplicidade da sociedade em relação a uma gigantesca miríade de canais de transferência de dinheiro público para grupos específicos, que inclui os racionais e legítimos, os defensáveis mas irracionais, e os francamente imorais.

A imensa maioria dos brasileiros que clama contra os políticos corruptos se beneficia de um ou mais desses canais, mas tende a se perceber sistematicamente como vítima de um sistema injusto. A sangria vai das concessões aos caminhoneiros aos subsídios a empresários, à Previdência supergenerosa de muitas categorias do serviço público e dos militares, à aposentadoria rural não contributiva com benefícios muito maiores do que a renda recebida na vida laboral, etc. – para citar apenas uns poucos exemplos de uma lista interminável, é claro.

Aparentemente, a sociedade brasileira considera que a maior parte dessas transferências e as novas demandas de dinheiro público que são feitas a todo instante por grupos específicos são não só legítimas e merecedoras de palmas, como também financiáveis, se não fosse pela corrupção dos políticos. Um duro e sofrido aprendizado estende-se à frente.

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