Parece impossível que o racismo saia de pauta um dia. Nesta semana,
Ana Maria Braga foi acusada nas redes sociais de “black face” [quando
um branco se “fantasia” de negro de forma caricata] ao aparecer – junto
com seu Louro José – de peruca black power para falar sobre penteados
afro. Na hora de dar as dicas para o tipo de cabelo… “Eu tô procurando
aqui alguém (dentro do estúdio) e eu acho que vou fazer no careca
(risos). Não tem ninguém com o cabelo… por que será? (risos)”
A Globo tem sido duramente criticada pelo pequeno número de atores
negros em “Segundo Sol”, novela das nove que se passa em Salvador,
conhecida como a cidade mais negra fora da África… No fim do ano
passado, William Waack foi retirado da bancada do Jornal da Globo [e
depois teve seu contrato com a emissora encerrado] após o vazamento de
um vídeo no qual ele diz “é coisa de preto” para um convidado, fora do
ar. E por aí vai… Ninguém melhor que Gloria Maria, estrela negra da
casa, para comentar sobre a representatividade do negro na emissora. Confira o que ela disse:
“Sou a prova”
De forma genérica, Gloria nos disse: “Não acho que a Globo esteja
revendo conceitos. Ela está acompanhando o tempo. Estou lá há quase 40
anos. Sou a prova de que não é uma questão de rever conceitos. No
jornalismo, temos eu, Dulcineia [Novaes], Heraldo [Pereira]… Claro que
tem que ter mais negro e isso a emissora está batalhando. Tem que ter
mais pretos porque é essa a cara do Brasil. Não somos um país da
Escandinávia”.
“Se a gente se preocupar com o cabelo, vira uma ação fútil”
Quem ousaria dizer que Gloria não é “empoderada”, certo? Mas a
jornalista usa o cabelo liso, o que não é bem visto por alguns grupos
ativistas. “Sou negra, nasci negra… Eu usava black power antes de ser
moda. Fiquei 20 anos de black power na TV. Agora, pra mim, black power
já deu. Sou do contra. Agora que todo mundo usa, não uso mais. Faz parte
da minha essência. Acho que cada um usa o que quer. Quem sou eu pra
dizer o que as pessoas devem usar? Mas também não admito que as pessoas
digam o que eu devo usar. Combater o racismo não é uma questão estética.
É uma questão de alma. Ninguém é discriminado pela aparência, e sim
pela cor da pele. É isso que tem que acabar. Se a gente se preocupar com
o cabelo ou com a roupa, vira uma ação fútil. A gente está discutindo
desigualdade racial.O buraco é muito mais embaixo”.
“A única coisa que a gente não tem mais é corrente nas pernas”
E apesar de famosa e bem-sucedida… “São 130 anos [da abolição da
escravatura no Brasil] e as coisas continuam iguais. A única coisa que a
gente não tem mais é corrente no pescoço, nas pernas, nos braços. Mas
tem corrente na alma. A gente tem que lutar para existir, para
sobreviver. Acabou a escravidão, mas o racismo continua. Sofro
preconceito todos os dias, mas deixo a vida me levar. Racismo é cafona e
além de tudo é crime. Eu fui a primeira a denunciar racismo como crime,
a primeira pessoa do país a usar a lei Afonso Arinos para se defender”.
“Elas sabem que existe um mundo branco e um mundo negro”
Como proteger suas duas filhas do preconceito? “A gente viajou para a
África e elas se sentiram representadas. É que aqui no Brasil a gente
vive num mundo branco e elas se encontraram num mundo negro. Foi a
primeira vez, na verdade… Foi uma coisa bem forte que marcou. Elas
querem voltar todo ano. Estudam em escolas de elite branca. Claro que
aquele racismo implícito, que é a cara do Brasil, elas sofrem todo dia.
Vão sofrer mesmo, é inevitável. Só que eu não fui preparada pra isso,
minha família não tinha cultura pra isso, mas preparo elas. Elas sabem
que existe um mundo branco e um mundo negro”.
“As coisas que eu sofri, elas vão sofrer também porque a barra é pesada”
“O racismo não vê questão social, nem bandeira. Às vezes são tão
racistas que nem sabem que são. Tem que combater o racismo como um todo,
e não em setores: não é assim que se ganha uma guerra. Eu continuo até
hoje sofrendo preconceito. E tudo que sofri, passo pra elas. Acho que
minhas filhas nunca vão ser presas na rua porque correram e são negras.
Mas as amigas brancas vão achar elas diferentes… Não me preocupo só com
as minhas filhas entrando em um restaurante, preparo elas para se
defenderem em todos os lugares, em qualquer situação. Ninguém avisa:
agora vou te discriminar. Elas podem estar entrando comigo em um hotel
luxuoso e de repente alguém dizer: aqui vocês não entram [foi numa
situação assim que Gloria mandou chamar a polícia, no passado]… As
coisas que eu sofri, elas vão sofrer também porque a barra é pesada”.
“Estou em um espaço que luto todo dia pra manter, muito mais do que eu lutei pra conquistar”
Sobre ser vista como referência de beleza, Gloria responde: “É porque
eu vivo de verdade. Vivo pra mim, para os meus amigos e minha família.
Não estou preocupada com o que as pessoas pensam. Estou em um espaço que
luto todo dia pra manter, muito mais do que eu lutei pra conquistar.
Então acho bacana que nessa altura da minha vida as pessoas achem que
sou um ícone de beleza, com a pele legal. Nunca fiz plástica, mas tenho
minhas fórmulas. Estive no Sri Lanka agora e aprendi com as mulheres de
lá, que têm a pele linda: elas pegam o finalzinho do mamão papaia,
raspam, botam limão siciliano e passam na pele. Estou passando todo dia.
Eu sou um conjunto da obra. Quero ficar bem, enquanto eu puder. Vou
empurrando com a barriga. Mas não vou forçar a barra nunca [para manter a
aparência jovem]”.
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