O Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou a súmula 618 estabelecendo que “a inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental”. Ou seja, nesse tipo de processo o réu terá de provar que não degradou o meio ambiente, e não quem o acusa. Sob a pretensa finalidade de ampliar a proteção do meio ambiente, o Tribunal se esqueceu do que diz a lei, em mais um exemplo de como a jurisprudência pode desequilibrar a relação entre as partes e causar insegurança jurídica.
O Código de Processo Civil (CPC, Lei 13.105/2015) define que o ônus da prova incumbe ao autor da ação, quanto ao fato constitutivo de seu direito, e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Ou seja, como é natural, cabe a cada umas das partes provar aquilo que apresenta no processo. Se o Ministério Público afirma, por exemplo, que houve degradação ambiental em determinada área, é ele que deverá provar a existência do dano. Essa é a regra geral.
A lei também prevê que o juiz, “diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput (a regra geral)”, poderá “atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído” (art. 373, § 1.º).
Assim, de forma inovadora, o CPC de 2015 permite que o juiz determine, no caso concreto, uma distribuição do ônus da prova diversa daquela fixada pela regra geral, exigindo sempre, no entanto, “que o faça por decisão fundamentada” e que dê à outra parte a possibilidade de se manifestar sobre a nova atribuição do ônus da prova.
Com a súmula 618, o STJ fez o oposto do que manda a lei. Ao definir a inversão do ônus para todos os casos de degradação ambiental, o tribunal isentou o juiz de fundamentar a nova distribuição do encargo de provar. O fundamento para a inversão passa a ser a súmula do STJ, e não as peculiaridades do caso concreto. Além disso, a manifestação da parte incumbida de provar torna-se irrelevante, já que a Corte definiu por antecipação que o ônus da prova deverá ser invertido em todas as ações de degradação ambiental.
Os tribunais e cortes superiores têm a missão de uniformizar a aplicação da lei, evitando decisões contraditórias entre as várias instâncias do Judiciário. Pacificar as questões jurídicas é precisamente assegurar que a lei seja cumprida no caso concreto. A jurisprudência deve, portanto, estar em sintonia com a legislação vigente. O papel do Judiciário não é criar novas obrigações e tampouco novas leis.
A súmula 618 do STJ rompe, no entanto, com essa estrutura fundamental do ordenamento jurídico, ao pretender que frágil jurisprudência, que deveria ser a mais harmoniosa aplicação da lei, se sobreponha ao que determina a legislação. A súmula de um tribunal só tem razão de existir se for para aplicar a lei. Não é papel da jurisprudência revogar ou inverter o sentido da aplicação de uma lei.
Nos últimos anos, o Congresso Nacional chegou a importantes consensos sobre matérias decisivas para o desenvolvimento econômico e social do País, como, por exemplo, o novo Código Florestal (Lei 12.651/2012) e a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017). Agora, cabe à Justiça promover a aplicação dessas leis, em fiel observância do equilíbrio encontrado pelo Poder Legislativo. De outra forma, a Justiça estaria dando aos casos concretos soluções diferentes daquelas aprovadas por quem recebeu do voto popular a prerrogativa de criar as leis que regem o País.
No início do ano, ao julgar uma série de ações que questionavam o novo Código Florestal, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu ampla concordância da lei ambiental com a Constituição. Foi uma decisão importante que, preservando a competência do Congresso, reforçou a autoridade da lei. Que os diversos tribunais, nesse e noutros assuntos, sigam o exemplo.
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