'Eu já tinha comprado todas as roupinhas dos meus filhos, a gente tava esperando a chegada deles... A dor é muito grande. Quero justiça'. Este foi o desabafo do auxiliar de cozinha Raimundo Cícero Gomes, de 33 anos, companheiro da manicure Vanessa do Socorro Castro Santos, de 27, que perdeu os filhos gêmeos na manhã de ontem após ser recusada na Santa Casa de Misericórdia e Hospital de Clínicas Gaspar Viana. Vanessa, que estava grávida de sete meses, enfrentou uma verdadeira via crúcis desde a madrugada da terça-feira para conseguir atendimento. Quando foi, finalmente, recebida na Santa Casa - na segunda tentativa - já era tarde demais: as crianças nasceram mortas.
Durante a confusão, a médica ginecologista Cynthia Lins, plantonista do hospital, teria recebido voz de prisão por omissão de socorro, partida de um militar que acompanhava o casal, e teve que se apresentar na delegacia do Comércio. Antes de ser afastada, a presidente da Santa Casa de Misericórdia, Maria do Carmo Lobato, concedeu entrevista coletiva no final da manhã e disse que, desde a última sexta-feira, a orientação no hospital era de não receber pacientes com gestação prematura, devido à superlotação nos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e de Cuidados Intensivos (UCI). A Polícia Civil já instaurou um inquérito para apurar o caso.
Segundo Raimundo Cícero, a busca por atendimento começou às 3h da manhã de ontem, quando a Vanessa começou a sentir fortes dores. O casal, que mora em Outeiro, seguiu imediatamente em busca de um hospital. 'A gente arrumou umas sacolas com fraldas e roupas, pegamos o primeiro ônibus de Outeiro, por volta de 4h30 da manhã, e fomos em direção à Santa Casa, que era onde ela fazia o pré-natal', relatou Cícero. Ao chegar no hospital, entretanto, o pai afirma que o atendimento foi negado. 'O porteiro disse que a Santa Casa não estava recebendo porque não tinha vagas para os bebês e disse pra gente procurar outro hospital. Ficamos desesperados, pegamos um táxi, com o pouco dinheiro que a gente tinha, e fomos para o Hospital de Clínicas, onde também nos negaram atendimento', lembra Cícero. Além de todos os problemas, a gravidez de Vanessa ainda era de risco, pois a mãe é portadora de Lúpus, segundo contou o marido.
Enquanto o desespero só aumentava, Raimundo Cícero, sentado na calçada do Hospital de Clínicas com a mulher, telefonou para o Serviço Móvel de Atendimento de Urgência (Samu) e não obteve retorno. 'Ficamos mais de uma hora sentados, esperando. Decidi então ligar para o Corpo de Bombeiros, e aí mandaram a ambulância', recorda. Na viatura dos Bombeiros, o casal decidiu retornar à Santa Casa, para, mais uma vez, tentar atendimento, onde chegaram por volta das 9h. Novamente, enfrentaram problemas para serem atendidos, segundo relatou Cícero. 'A minha mulher ficou na ambulância, morrendo de dor, enquanto a gente esperava. Foi aí que a bolsa estourou, e ela começou a sangrar. Quando o cabo dos Bombeiros foi olhar, a primeira criança já estava nascendo, e ele fez o parto do bebê, que nasceu morto', contou Cícero.
Diante da situação crítica, Cícero conta que, finalmente, as portas da Santa Casa se abriram para o atendimento. 'Já era tarde demais. Ela entrou pra ser atendida, mas o segundo bebê também nasceu morto', lamentou o pai. Para Raimundo Cícero, houve omissão do hospital. 'Estou arrasado com esse acontecimento horrível. Dou nota zero não só para a Santa Casa, mas para a saúde pública como um todo. Estou revoltado, porque ficamos à mercê e não recebemos o atendimento devido. Talvez os nossos filhos estivessem aqui agora se não fosse a negligência. Não é justo que isso tenha acontecido, esperamos tanto por essas crianças', disse o marido.
Os gêmeos seriam os primeiros filhos do casal. Agora, Cícero afirma querer justiça. 'Vou entrar com um processo contra a Santa Casa e contra o Estado', disparou.
Sindicância do CRM mira conduta médica
O Conselho Regional de Medicina informou que vai abrir uma sindicância para apurar os fatos. 'Mesmo tendo conhecimento pela imprensa, já consideramos a sindicância aberta', disse o conselheiro federal pelo CRM, Antônio Pinheiro. Em entrevista ao Portal ORM, ele explicou que a médica e a presidente da Santa Casa vão ser chamadas para prestar esclarecimentos sobre o caso. 'Primeiro, vamos saber mais detalhes, como o nome completo da médica, endereço, para que ela receba o comunicado, por meio de correspondência, para comparecer ao CRM para ser ouvida', detalhou Pinheiro.
Caso as acusações sejam comprovada, elas estão sujeitas às cinco penalidades previstas pelo Conselho Regional de Medicina: a advertência confidencial, advertência pública, censura pública, suspensão de 30 dias ou cassação da licença. Por sua vez, o Centro de Perícias Científicas Renato Chaves informou que, no final da tarde, foram liberados os corpos dos bebês. O laudo deve ficar pronto em dez dias úteis, podendo ser prorrogado por igual período.
Tão logo foram liberados do Instituto Médico-Legal, que faz parte do CPC Renato Chaves, os corpos dos bebês foram levados para o cemitério de Icoaraci, ontem ocorreu o enterro.
Sesma - A Secretaria Municipal de Saúde (Sesma) esclarece que, juntamente com a equipe do Samu 192 Belém, fez uma busca nos registros eletrônicos de solicitação de atendimento do serviço e informa que as únicas solicitações de atendimento para gestantes, foram para uma jovem, do bairro do Sideral, no sexto mês de gestação que relatou sentir dores e outra para paciente no quinto mês de gestação, moradora do bairro do Tenoné, que relatou uma crise asmática, sendo em seguida atendida pela equipe do Samu Belém e encaminhada ao hospital Abelardo Santos.
Não consta nos registros do Samu192 Belém outras solicitações de atendimento para pacientes gestantes ou que se enquadrem em perfil semelhante à da paciente envolvida na situação desta manhã às portas da Santa Casa de Misericórdia.
Governador admite erro do estado e exonera dirigentes
O governador Simão Jatene exonerou na tarde de ontem a presidente da Fundação Santa Casa, Maria do Carmo Lobato, e a chefe do setor de Tocoginecologia do hospital, Florentina Balby, tão logo tomou conhecimento da morte de dois bebês prematuros provocada pela falta de atendimento naquela casa de saúde.
Jatene soube do episódio no intervalo de uma série de audiências com ministros do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, e se manifestou: 'É inadmissível! Não existe nada - absolutamente nada! - mais importante em um hospital, seja qual for a circunstância, do que a preservação da vida', advertiu o governador. 'Há protocolos, regulações, definições de responsabilidades em relação ao atendimento. Mas nada disso - repito: nada! - é maior do que a vida de uma pessoa', definiu.
Ele deixou claro ainda que o governo tem o dever de admitir os erros e procurar consertá-los imediatamente, para que não se repitam nem se tornem viciosos. 'O Estado errou. É preciso ter coragem de assumir. Não se pode ficar transferindo responsabilidades. Foi por isso que determinei a imediata exoneração dos gestores envolvidos', completou. 'Ninguém é obrigado a se tornar servidor público. Mas se você faz essa opção tem de abraçar e cumprir todas as suas responsabilidades'.
O secretário de Saúde, Hélio Franco, reafirmou as orientações de Simão Jatene. 'Maternidade é emergência. Todo bom médico sabe disso. Não se pode encaminhar uma gestante para outro hospital sem que ela passe por uma avaliação, ainda que o hospital esteja lotado', afirmou o secretário.
Pai das crianças registrou queixa na Seccional do Comércio
O pai registrou um boletim de ocorrência sobre o caso na Seccional do Comércio e foi ouvido dentro do inquérito policial aberto para investigar o caso, presidido pela delegada Maria do Perpétuo Picanço. 'Estamos verificando se houve homicídio culposo, omissão de socorro, ou alguma conduta do tipo', disse. A delegada afirma que as pessoas envolvidas no caso estão sendo ouvidas. Segundo ela, o inquérito deve ser encerrado em, no máximo, 30 dias.
Até a tarde de ontem, Vanessa seguia internada na Santa Casa e, segundo a presidente do hospital, apresentava um quadro estável. Os corpos das crianças foram encaminhados ao Instituto Médico Legal para necropsia. Segundo a presidente da Santa Casa, há indícios de que a morte fetal poderia ter ocorrido há 24 horas ou mais, informação que só o laudo do instituto poderá confirmar ou refutar.
Maria do Carmo disse que é preciso que haja investimento preventivo para evitar situações críticas, como fortalecer o pré-natal e evitar a gravidez precoce. 'A base de tudo é o pré-natal', reforçou. Aos jornalistas, Maria do Carmo disse ainda que cerca de 49 a 51% das parturientes que chegam ao hospital são provenientes de outros municípios do Estado.
Segundo Maria do Carmo, 'a Santa Casa lamenta muitíssimo o ocorrido' e está dando todo o suporte para a paciente, que foi internada no hospital. 'Com certeza vamos fazer todo o levantamento dos fatos. A Santa Casa é um hospital de referência em partos de risco e ninguém espera que registre uma baixa ocupação, mas a superlotação de leitos é uma situação dramática', finalizou.
Por telefone, a assessoria de comunicação do Hospital de Clínicas Gaspar Vianna afirmou que 'o hospital está investigando o que aconteceu, mas informa que não há registros de que a paciente em questão tenha tentado dar entrada no hospital na manhã de ontem.
Ginecologista afirma que não omitiu socorro e acusa abuso
Na Seccional do Comércio, a médica que teria recebido voz de prisão, Cynthia Lins, falou brevemente com a imprensa e disse que não houve omissão de socorro. 'É bom esclarecer que em nenhum momento houve essa omissão. O que houve foi um esclarecimento sobre a superlotação do hospital, e as crianças não morreram por falta de atendimento. Além disso, houve um abuso de poder por parte do Corpo de Bombeiros', disse a médica.
O diretor do Sindicato dos Médicos do Pará (Sindmepa), João Gouveia, esteve presente na Seccional do Comércio e também afirmou que não ficou caracterizada omissão de socorro. 'Houve um equívoco em relação a isso e também uma tentativa de prisão ilegal. A médica estava trabalhando e em nenhum momento se omitiu. Nós não vamos aceitar que os médicos continuem sendo bodes expiatórios dessas situações, o médico é um profissional e merece ser respeitado. A culpa, neste caso, é do sistema de saúde', destacou o diretor.
Sindmepa dá apoio à profissional e diz que médico não é bandido
Em nota enviada à imprensa, o Sindicato dos Médicos do Pará (Sindmepa) acrescentou, ainda, que 'médico não é bandido e polícia tem como função prender bandido, não gente que tenta realizar a sua tarefa da melhor maneira possível, apesar da precariedade das condições de trabalho'. O Sindmepa informou que 'vai dar todo o apoio jurídico e institucional aos colegas envolvidos e que vai procurar, novamente, as autoridades de segurança do Estado, a fim de discutir, mais uma vez, a caracterização da chamada omissão de socorro, porque, se a interpretação sobre o tema continuar desvirtuada como está, ficará inviável para a categoria continuar a trabalhar no sistema público'
A nota diz ainda que 'quem tem que prover leitos para atender à população não é a categoria médica, mas sim, os gestores da saúde. A esse profissional cabe apenas prestar atendimento clínico. Por isso, o Sindmepa lamenta o ocorrido e conclama as autoridades responsáveis para que tomem o caso como um mote para discutir seriamente a saúde no nosso Estado, buscando oferecer melhores condições de trabalho e remuneração não só à categoria médica, mas a todos os profissionais da saúde'. O Sindmepa reiterou ainda que vai aguardar a apuração dos fatos, 'garantindo aos colegas médicos o amplo direito de defesa e chamando a categoria para, em breve, realizar uma assembleia geral'.
Unidades de tratamentos intensivos estão superlotadas
Em entrevista coletiva concedida no final da manhã de ontem, a então presidente da Santa Casa, Maria do Carmo Lobato, disse que a paciente não foi recebida no hospital por conta de uma superlotação nos berçários de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e UCI (Unidade de Cuidados Intensivos) do hospital. 'Hoje, estamos com 123 bebês prematuros internados na Santa Casa, quando a nossa capacidade é de 107 vagas para esses recém-nascidos. Não temos mais condições de receber prematuros', disse a presidente da Santa Casa. A orientação de não receber pacientes de gestações com esse tipo de perfil - a menos que se tratasse de uma gestação 'expulsiva' - estava vigorando na Santa Casa desde a última sexta-feira, segundo a gestora. Lobato informou que, na segunda vez que a mãe procurou atendimento no hospital, ela foi recebida e, ao passar pelo processo de triagem, foi constatado que os bebês já estavam sem vida.
De acordo com Maria Lobato, não houve omissão de socorro por parte da médica plantonista. 'Essa acusação é uma injustiça. Assim que soubemos do relato de que a médica teria recebido voz de prisão, nós a acompanhamos com dois procuradores até a delegacia, aonde ela compareceu espontaneamente. Houve um comportamento inadequado de um dos Bombeiros que ameaçou prender a médica, daí essa situação', justificou. 'Hoje, nós não temos onde internar os prematuros, mas a médica estava fazendo o seu trabalho. Ela não tem culpa de nada. A equipe não tinha como atender. Os profissionais que estão atuando junto a esses bebês são verdadeiros heróis', disse Lobato.
A presidente enfatizou que a Santa Casa não é o único hospital de Belém para atender as gestantes. (No Amazônia)
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