Sem a distinção entre Bem e Mal não há política verdadeira. É esse o desafio para quem queira renovar
Acabo de ler o mais recente livro de Alain Touraine, Carnets de Campagne
(Cadernos de Campanha), sobre a campanha de François Hollande. Sem
entrar no mérito das apostas políticas do autor, é admirável a
persistência com que Touraine vem estudando as agruras da sociedade
contemporânea como resultado da crise da "sociedade industrial".
Ele
refuta análises baseadas numa sociologia dos sistemas e não, como lhe
parece mais apropriado, numa sociologia dos "sujeitos históricos" e dos
movimentos sociais. O livro vai direto ao ponto: não é possível conceber
a política apenas como uma luta entre partidos, com programas e
interesses opostos, marcados por conflitos diretos entre as classes.
A
globalização e o predomínio do capital financeiro-especulativo
terminaram por levar o confronto a uma pugna entre o mundo do lucro
(como ele designa genericamente, com o risco de condenar toda forma de
capitalismo) e o mundo da defesa dos direitos humanos e de um novo
individualismo com responsabilidade social, temas que Touraine já
tratara em 2010 no livro Após a Crise, fundamentados em outra publicação, Penser Autrement, de 2007.
A ideia central está resumida na parte final de Após a Crise: ou nos abandonamos às crises, esperando a catástrofe final, ou criamos um novo tipo de vida econômica e social.
Neste
é preciso reviver o apelo aos direitos universais da pessoa humana à
existência, à liberdade, aos pertencimentos sociais e culturais -
portanto, à diversidade de identidades -, que estão sendo ameaçados pelo
mundo desumano do lucro.
É preciso contrapor os temas morais ao
predomínio do econômico. Há uma demanda crescente de respeito por parte
dos cidadãos. Estes aderem a valores não como decorrência automática de
serem patrões, empregados, ricos, pobres, pertencerem a esta ou àquela
organização, mas por motivos morais e culturais.
Com essa
perspectiva, Touraine responde categoricamente que não é com os partidos
que a política ganhará outra vez legitimidade. As instituições estão
petrificadas. Só os movimentos sociais e de opinião, movidos por um novo
humanismo expresso por lideranças respeitadas, pode despertar a
confiança perdida.
Só assim haverá força capaz de se opor aos
interesses institucionais do capitalismo financeiro-especulador, que
transformou o lucro em motor do cotidiano. Daí a importância de novos
atores, de novos "sujeitos sociais", portadores de uma visão de futuro
que rejeite o statu quo.
A partir daí, Touraine, sociólogo
experimentado, não propõe uma prédica "moralista", mas sim novos rumos
para a sociedade. Estes, no caso da França, não podem consistir numa
volta à "social-democracia", ou seja, ao que representou na sociedade
industrial o acesso aos bens públicos pelos trabalhadores; muito menos
ao neoliberalismo gerador do consumismo que mantém o carrossel do lucro.
Trata-se
de fazer o mundo dos interesses ceder lugar ao mundo dos direitos e à
luta contra os poderes que os recusam às populações. É preciso libertar o
pensamento político da mera análise econômica.
Os exemplos de
insatisfação abundam, e não só na França. Vejam-se os "indignados"
espanhóis, os rebeldes da Praça da Paz Celestial de Pequim ou os atores
da Primavera Árabe. Falta dar-lhes objetivos políticos que, acrescento
eu, criem uma nova institucionalidade, mais aberta ao individualismo
responsável e à ação social direta que marcam a contemporaneidade.
Por
que escrevo isso aqui e agora? Porque, mutatis mutandis, também no
Brasil se sentem os efeitos dessa crise. Não tanto em seus aspectos
econômicos, mas porque, havendo independência relativa entre as esferas
econômicas e políticas, a temática referida por Touraine está presente
entre nós.
Se me parece um erro reduzir o sentimento das ruas a
uma crise de indignação moral, é também errado não perceber que a crise
institucional bate às nossas portas e as respostas não podem ser
"economicistas".
A insatisfação social é difusa: é a corrupção
disseminada, são as filas do SUS e seu descaso para com as pessoas, é o
congestionamento do trânsito, são as cheias e os deslizamentos dos
morros, são a violência e o mundo das drogas, é a morosidade da Justiça,
enfim, um rosário de mal-estar cotidiano que não decorre de uma
carência monetária direta - embora também haja exagero quanto ao
bem-estar material da população -, mas constitui a base para
manifestações de insatisfação.
Por outro lado, cada vez que uma
instituição, dessas que aos olhos do povo aparecem como carcomidas,
reage e fala em defesa das pessoas e dos seus direitos, o alívio é
grande. O Supremo Tribunal Federal, numa série de decisões recentes, é
um bom exemplo.
No momento em que o Brasil parece mirar no espelho
retrovisor das corrupções, dos abusos e leniências das autoridades com o
malfeito, corre-se o risco de crer que tudo dá no mesmo: os partidos,
as instituições, as lideranças políticas, tudo estaria comprometido.
É
hora, portanto, para um discurso que, sem olhar para o retrovisor e sem
bater boca com "o outro lado", até porque os lados estão confundidos,
surja de base moral para mobilizar a população.
Quem sabe, como na
França, a palavra-chave seja outra vez igualdade. Na medida em que, por
exemplo, se vê o Tesouro engordar o caixa das grandes empresas à custa
dos contribuintes via BNDES, uma palavra por mais igualdade, até mesmo
tributária, pode mobilizar. Para tal é preciso politizar o que aparece
como constatação tecnocrática e denunciar os abusos usando a linguagem
do povo.
Está na moda falar sobre as "novas classes médias",
muitas vezes com exagero. Se até agora elas vão ao embalo da ascensão
social, amanhã demandarão serviços públicos melhores e poderão ser mais
críticas das políticas populistas, pois são fruto de uma sociedade que é
"da informação", está conectada.
Crescentemente, cada um terá de
dizer se está ou não de acordo com a agenda que lhe é proposta. As
camadas emergentes não são prisioneiras de um status social que regule
seu comportamento.
Aos líderes cabe politizar o discurso, no
melhor sentido, e com ele tocar a alma dos recém-vindos à participação
social, não para que entrem num partido (como no passado), mas para que
"tomem partido" contra tanto horror perante os céus.
Isso só
ocorrerá se os dirigentes forem capazes de propor uma agenda nova, com
ressonância nacional, embasada em crenças e esperança. Sem a distinção
entre bem e mal não há política verdadeira. É esse o desafio para quem
queira renovar.
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