O lançamento oficial de "O Nome de Deus é Misericórdia", produzido em parceria com o vaticanista Andrea Tornielli, do diário italiano "La Stampa", acontece nesta terça-feira (12).
O texto, brevíssimo (basta uma tarde para lê-lo), transcreve trechos de conversas entre Tornielli e o pontífice que aconteceram em julho de 2015 nos aposentos de Francisco na Casa Santa Marta, a "hospedaria" do Vaticano.
Em seus diálogos com o vaticanista, Francisco aborda o tema da misericórdia divina e do anseio humano por essa misericórdia num tom que já caracterizava os sermões do papa em sua visita ao Brasil, em 2013: o de pároco planetário.
De fato, a "persona" adotada pelo papa no texto é a daquele padre idoso e compreensivo de cidade pequena, acostumado a lidar tanto com as beatas da paróquia quanto com os bêbados que às vezes invadem a missa de domingo.
Tradicional - Por isso mesmo, não há nada no texto que faça jus à aura de revolucionário do pontífice. Mesmo porque as perguntas de Tornielli, bastante domesticadas, raramente tocam temas polêmicos.
O que predomina no pensamento do papa é a reafirmação serena e moderada da doutrina cristã tradicional: sim, o pecado existe (inclusive o pecado original, embora Francisco, defensor da teoria da evolução, não interprete de forma literal a rebelião de Adão e Eva contra Deus); se o ser humano não reconhece a mácula gerada por esse pecado e não deseja o perdão divino, não há esperança para ele.
Francisco, porém, enfatiza a boa notícia embutida nesse cenário teológico aparentemente desolador: não importa o tamanho da escorregada humana nem a frequência dessas escorregadas, Deus estará sempre de braços abertos.
Isso também significa que as pessoas precisam se esforçar para seguir o exemplo do Criador e perdoar sempre —ou "setenta vezes sete", como escreve, citando uma fala de Jesus nos Evangelhos.
Essa convicção motivou Francisco a abrir no fim de 2015 um Ano Santo da Misericórdia, no qual os fiéis podem "zerar suas dívidas" com Deus, por assim dizer.
Em sua conversa com Tornielli, ele ressalta que não há nenhuma grande novidade nessa visão. Tanto João Paulo 2º quanto Bento 16 dedicaram parte importante de seus escritos e de seu apostolado à misericórdia. O título do livro, aliás, é inspirado numa frase do papa emérito e antecessor de Francisco.
No Confessionário - Dada essa ênfase na continuidade, algo de fato muda com o pontificado de Francisco? Talvez o mais marcante seja a imagem, repetida pelo papa no livro, de uma igreja que é um hospital improvisado numa zona de guerra, que vai ao encontro de quem se sente ferido, e não uma igreja que permanece fechada em si mesma.
O papa aconselha, por exemplo, os padres a não serem sovinas com as absolvições no confessionário —Francisco é um entusiasta da confissão tradicional— e a dar uma bênção aos fiéis mesmo quando sentem que não é possível absolvê-los.
Cita um padre que admirava, o qual, preocupado por absolver as pessoas com muita facilidade, rezava a Jesus dizendo: "Senhor, perdoe-me, mas foi o Senhor que me deu o mau exemplo de perdoar sempre!".
'por que eles?'
Os aspectos mais polêmicos aparecem tangencialmente na obra, embora Francisco às vezes surpreenda ao abordá-los.
Comentando seu famoso "Quem sou eu para julgar?", a respeito dos fiéis gays, ele afirma: "Prefiro que as pessoas homossexuais se venham confessar, que fiquem próximas do Senhor, que possamos rezar juntos".
Em contraste com certos grupos cristãos conservadores, o papa defende a necessidade de um tratamento humano e misericordioso dos que estão na prisão, independentemente do crime que tenham cometido.
"Cada vez que entro numa prisão, tenho sempre este pensamento: 'Por que eles e não eu?'. Devia estar aqui, merecia estar aqui."
Leia a seguir trecho do novo livro do papa Francisco, no qual ele aborda a corrupção.
"A corrupção é o pecado que, em vez de ser reconhecido como tal e de nos tornar humildes, se tornou sistema, (...), uma forma de vida. Não sentimos necessidade de perdão e de misericórdia, mas justificamo-nos e aos nossos comportamentos.
Jesus diz aos seus discípulos: 'Se alguém te ofender sete vezes ao dia e sete vezes vier te dizer 'Arrependo-me', perdoa-lhe'. O pecador arrependido, que depois cai e recai no pecado por motivo da sua fraqueza, encontra novamente perdão quando reconhece que necessita de misericórdia. O corrupto, por sua vez, é aquele que peca e não se arrepende, peca e finge ser cristão, e com a sua dupla vida provoca escândalo."
"O corrupto não conhece a humildade, não sente necessidade de ajuda, leva uma dupla vida. Em 1991, dediquei a este tema um longo artigo, publicado num pequeno livro, 'Corrupção e Pecado'.
Não é preciso aceitar o estado de corrupção como se fosse apenas mais um pecado. Embora muitas vezes se identifique a corrupção com o pecado, na realidade trata-se de duas realidades diferentes, apesar de interligadas.
O pecado, sobretudo se reiterado, pode levar à corrupção, mas não quantitativamente –no sentido de que um determinado número de pecados não fazem um corrupto–, quando muito qualitativamente: criam-se hábitos que limitam a capacidade de amar e levam à autossuficiência. O corrupto cansa-se de pedir perdão e acaba por acreditar que não deve pedir mais."
"Não nos transformamos de repente em corruptos; existe um longo caminho de declínio, para o qual se desliza e que não se identifica simplesmente com uma série de pecados.
Uma pessoa pode ser uma grande pecadora e no entanto pode não ter caído na corrupção. Aludindo ao Evangelho, penso no exemplo das figuras de Zaqueu, de são Mateus, da samaritana, de Nicodemo, do bom ladrão: nos seus corações, pecadores todos, tinham alguma coisa que os salvava da corrupção. Estavam abertos ao perdão (...), e foi essa abertura que permitiu que a força de Deus entrasse.
Ao reconhecer-se como tal, o pecador de alguma forma admite que aquilo a que aderiu, ou adere, é falso. Por sua vez, o corrupto esconde aquilo que considera o seu verdadeiro tesouro, aquilo que o torna escravo, e disfarça o seu vício com a boa educação, arranjando sempre uma forma de salvar as aparências."
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