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quarta-feira, 1 de junho de 2016

A moda e a imagem da mulher-objeto

Por que campanhas e editoriais desumanizam a figura feminina - e como isso endossa a cultura do estupro
Recém-lançado, a campanha de primavera 2016 da Calvin Klein causou controvérsia por mostrar a atriz Klara Kristin, com a calcinha à mostra. Esse tipo de foto é designado em inglês pelo termo "upskirt" e considerado crime em alguns países.
Modelos supermagras, cenários loucos, fotógrafos badalados, vestidos de grife que custam alguns milhares de dólares. No mundo da moda, vale tudo para vender a imagem mais bacana, polêmica e “artística”. Será? A marca americana Calvin Klein divulgou recentemente uma novo foto de sua campanha “#mycalvins”, em que a modelo dinamarquesa Klara Kristin aparece fotografada de um ângulo, no mínimo, esquisito. Feita de baixo, sob a saia, deixando a calcinha da mulher evidente, a imagem que abre este texto fala por si só. Tem o erotismo como tema. E só.

Passou batido o fato da imagem fazer apologia a uma das formas mais corriqueiras de violência contra a mulher: fotos íntimas roubadas, registradas e divulgadas sem consentimento. Em inglês, há um termo próprio para isso: ‘upskirt’ - na Austrália e na Índia, inclusive, existe uma legislação específica para combater a prática e enquadrá-la como criminosa. E aí cabe a mea culpa: no calor da notícia, eu, jornalista, defensora ferrenha da liberdade e dos direitos femininos, não me choquei. Em alguns anos de moda - e em 30 vividos em uma sociedade machista - já vi tantas fotos deste tipo que ok, faz parte.

Não. Não faz. Não está ok. Quando uma garota de 16 anos é estuprada por 33 caras (e ainda tentam culpá-la) fica óbvio que a imagem fashion misógina integra, endossa e fortifica a cultura do estupro. E a moda… Ah, a moda está cheia disso. “Cultura do estupro? Lá vem vocês com mais uma bobagem feminista”. Bobagem 1: campanha da Dolce & Gabbana em que uma mulher aparece deitada e submetida a um grupo de homens. Bobagem 2: anúncio do perfume Tom Ford em que o frasco está estrategicamente posicionado no meio das pernas abertas de uma mulher. Bobagem 3: publicidade da marca de sapatos Jimmy Choo em que uma jovem aparece desacordada no porta-malas de um carro à beira da estrada enquanto um homem cava um buraco com uma pá (jura?).

Daria para passar o dia enumerando exemplos de mau gosto de uma lista encabeçada pelo badalado fotógrafo Terry Richardson, queridinho de Kim Kardashian e companhia e especialista em clicar modelos e atrizes em situações degradantes (atualmente, inclusive, muitas se recusam a trabalhar com ele). “O feminismo coloca óculos sobre determinadas questões. Só precisamos de um gatilho para enxergá-las”, diz Jules de Faria, militante feminista e criadora da ONG Think Olga. “Hoje, na verdade, é como se eu tivesse feito uma cirurgia no olho: vejo machismo em tudo. Porque tem machismo em tudo!” Idealizadora da campanha “Chega de Fiu Fiu” e uma das principais representantes da causa no País, a Jules é minha amiga de longa data. Sempre compartilhamos a paixão por moda, sapatos lindos e looks moderninhos. Liguei para ela também para tentar entender se moda e feminismo podem conversar.

A resposta: “Muitas vezes a gente tende a pensar com um olhar artístico. Mas não dá para acreditar que vivemos num vácuo, que as coisas que produzimos não vão dialogar com o que está acontecendo no mundo e ter consequências”. Para ela (e eu assino embaixo), há na moda um ciclo de tortura feminino, em que a mulher é objetificada e desumanizada, o que começa na imagem da modelo supermagra, perfeita, com o olhar perdido. “Assim ela não parece um ser complexo como o homem, com dor, sentimento, sonho, ansiedade. É um ser raso”, diz Jules. “Elas são retratadas assim porque o pensamento sempre foi masculino. Inclusive o da própria mulher, pois muito cedo a gente aprende noções machistas, a ter uma visão masculina do mundo.”

Colocar os óculos da cultura do estupro me fez pensar em ‘Mad Men’, naqueles publicitários misóginos dos anos 1960 (eles são nossos avós, nem faz tanto tempo assim!) e nas origens da mulher colocada como coisa em anúncios. Segundo Ana Paula Passareli, coordenadora do curso Gênero na Publicidade da ESPM, a objetificação feminina na mídia reflete a sociedade e começa ainda antes, nos anos 1940, quando apareciam como ‘recatadas e do lar’, em casa, a serviço do marido e da família. “Com o cenário pós guerra e dos anos 50 e 60, que traz o jovem para o centro da publicidade, a mulher passa a ser representada por sua beleza, o que fica evidente com a disseminação da pílula anticoncepcional”, explica Ana Paula.

Ou seja: a "libertação sexual" feminina passou a fazer parte da cultura e o nosso corpo, um objeto de utilidade pública. “Então começamos a ver mulheres cada vez mais sorridentes, com menos roupas, se tornando um convite ao prazer - dos outros, porque se fundamenta aqui a sexualização dela como fator crucial de construção da imagem feminina ideal.” 

“A dominância do homem sobre a mulher fala de poder no seu estado mais puro, por isso é inacreditavelmente comum ver marcas de luxo usarem simulações de estupro e abuso para promover seus produtos”, afirma Ana Paula. Em tempo: a imagem do início do texto, da ‘upskirt’, foi feita por uma mulher, a jovem fotógrafa britânica Harley Weir. Provavelmente ela nunca teve sua intimidade devassada ou pegou um metrô lotado em que tentaram fotografá-la por debaixo da saia. Falta de empatia total. Chega, né? Na moda e na vida, colocamos os óculos. Vamos fazer um escândalo. Machistas não passarão. Misoginia não passará. Nem a cultura do estupro.
(Fonte: Giovana Romani - Estadão)

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