Editorial - Estadão
Quando tomam posse, os deputados fazem o seguinte juramento: “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. Nem é preciso muito esforço para observar que o atual Congresso está repleto de figuras para as quais esse juramento não valia o papel em que estava escrito. O deputado Eduardo Cunha, por exemplo, acredita que, apesar daquele compromisso solene, não é obrigado a dizer a verdade o tempo todo – apenas quando lhe convém. É isso o que se depreende da entrevista coletiva que o encalacrado parlamentar deu na terça-feira passada. Afastado da presidência da Câmara e de seu mandato desde 5 de maio, Cunha convocou a entrevista para rebater as muitas acusações que pesam contra ele. O parlamentar considera que há “nítido cerceamento de defesa” em seu caso, razão pela qual decidiu “voltar com regularidade a prestar satisfações”. Até então, argumentou, ele havia se limitado a reagir por meio das redes sociais e de notas oficiais, mas essa prática “tem prejudicado muito a minha versão dos fatos”. Agora, Cunha diz que está disposto a se “expor ao debate”.
Na primeira oportunidade para dar sua “versão dos fatos”, Cunha agiu como sempre: apelou para a ingenuidade do distinto público. Ele declarou estar “absolutamente convicto” de que não mentiu à CPI da Petrobrás quando disse que não tinha contas no exterior. Foi em razão dessa acusação que, no dia 14, a Comissão de Ética aprovou o pedido de cassação do deputado.
Cunha disse que foi espontaneamente à CPI e que “não estava sob juramento”, donde se depreende que ele se julgava desobrigado, moral e legalmente, de dizer a verdade. E ele foi didático: “Pela nossa Constituição, ninguém é obrigado a fazer prova contra si, ou seja, poderia perfeitamente não produzir prova contra mim, mas optei por responder à pergunta na sua literalidade: se eu tinha ou não conta”.
Desse modo, Cunha tenta reduzir todo o extenso rol de crimes dos quais é acusado a um mero mal-entendido. A malandragem semântica do parlamentar, contudo, esbarra nos fatos. Não se trata apenas de ter ou não mentido a respeito de uma conta no exterior. Há que ver a origem do dinheiro que abasteceu suas contas.
Ela é fabulosa, a crer na versão do deputado, ou altamente suspeita, segundo o Ministério Público. Além disso, o deputado é réu no Supremo Tribunal Federal num processo em que é acusado de receber US$ 5 milhões em propina no petrolão. Outra denúncia, a de que Cunha usou contas na Suíça para lavar dinheiro, foi aceita ontem pelo Supremo. Além disso, a Procuradoria-Geral da República acusa Cunha de receber R$ 52 milhões em propinas na obra de um porto no Rio e diz ainda que o deputado intimidou testemunhas na CPI da Petrobrás. As acusações se estendem a sua família: a mulher de Cunha responde a processo por lavagem de dinheiro, como titular de uma conta na Suíça que teria recebido dinheiro de propina obtida pelo marido. Recentemente, a Lava Jato protocolou ação civil pública de improbidade contra Cunha, acusado de se beneficiar do esquema na Petrobrás. Os procuradores querem que ele pague uma multa de R$ 270 milhões. Além dessa enxurrada de denúncias, Cunha, por decisão do Supremo, foi afastado da presidência da Câmara e de seu mandato porque obviamente estava fazendo uso das prerrogativas do cargo para atrapalhar o julgamento de seu caso na Comissão de Ética.
Se tudo isso não basta para cassar um deputado por quebra de decoro, é difícil de imaginar o que seria necessário. Especialista em explorar as fragilidades do sistema político, por meio das quais construiu para si, na Câmara, uma rede de proteção que se assemelha a uma organização mafiosa, Cunha escarnece sistematicamente da inteligência alheia. Apoiando-se em filigranas, chicanas e ardis, o deputado, que desonra cada um dos votos que recebeu, tornou-se o símbolo de tudo aquilo que o País deve superar se quiser reencontrar o tão desejado caminho da recuperação moral. O primeiro passo para isso é seguir a lógica do próprio Cunha e não acreditar em uma palavra do que ele disse na entrevista – afinal, ele não estava sob juramento.
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