Editorial - Folha de SP
Vista por alguns como crime assemelhado à matança bíblica dos inocentes e por outros como simples interrupção da gravidez, a prática do aborto é um tema sobre o qual, provavelmente, nenhum consenso será jamais alcançado. Seja como for, a autoridade da Igreja Católica em tais questões continua a ser decisiva para milhões de pessoas, e até mesmo para a esfera da legislação civil e penal —que dela não deveria depender em nenhuma organização social democrática e moderna.
Por certo, não seria de esperar do papa Francisco que mudasse a doutrina católica sobre o aborto. Seu último pronunciamento sobre o tema, na carta apostólica "Misericordia et Misera", coincide entretanto com o espírito mais cálido que caracteriza o seu pontificado.
Em contraste com o intelectualmente respeitável, mas minucioso e rígido, estilo do antecessor Bento 16, Francisco procura destacar mais os aspectos de compreensão e perdão do que as distinções, que obviamente não abandona, entre o pecado e a virtude, o abominável e o digno de louvor.
Foi no âmbito do perdão, com efeito, que a carta apostólica do papa trouxe uma novidade sutil. Até há pouco, apenas os bispos tinham o poder na hierarquia católica de conceder absolvição às mulheres que praticassem aborto.
A regra foi flexibilizada a partir do final de 2015, quando a Igreja Católica começou a celebrar o Ano da Misericórdia: também aos padres se estendeu essa autorização, cujo prazo, agora, Francisco prolonga indefinidamente.
Não é a primeira vez que o papa insiste no episódio evangélico em que Jesus interveio no apedrejamento da mulher adúltera, citado no começo da carta. A beleza da passagem é destacada por Francisco: dispersada a multidão dos furiosos, "ficaram apenas eles dois, a misericórdia e a mísera".
A fé que apedreja e mata, que exclui e que condena, infelizmente continua parte da realidade contemporânea, como acontecia nos tempos de Cristo. O valor de uma religião da misericórdia, capaz de ampliar seu espectro de preocupações para além da moral sexual, é uma das marcas mais sensíveis do pontificado de Francisco.
No complexo âmbito da vida civil, em que as certezas da religião não devem interferir nas leis do Estado, a questão do aborto continuará a ser foco de polêmicas.
A realização de um plebiscito, como defende esta Folha, propiciaria discussão mais profunda do assunto e, sobretudo, a afirmação da independência entre leis democráticas e convicções religiosas.
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