"Que diabo de doidice é essa?", gritou a mulher de Ruberley Torres da Fonseca (foto), 40, ao ver o marido chegar em casa quase sem fôlego. Eram 6h da manhã da última quarta-feira (23) em Porto de Moz, cidade de 39 mil habitantes no interior do Pará. Àquela hora, por isso o susto, Ruberley já deveria estar em Altamira, para onde saíra de barco no começo da noite do dia anterior.
A embarcação, porém, naufragou no meio do caminho e pelo menos 21 pessoas morreram. Havia cinco desaparecidos até o começo da noite desta quinta-feira (24).
Ruberley foi o primeiro sobrevivente a chegar a Porto de Moz e avisar os órgãos públicos da tragédia que acabara de ocorrer nas águas escuras do rio Xingu.
Ele faz a rota há mais de 20 anos, muitas vezes no mesmo barco, o Capitão Ribeiro, que sai de Santarém pelo rio Amazonas e faz cinco paradas (em Monte Alegre, Prainha, Almeirim, Porto de Moz e Senador José Porfírio) até chegar a Vitória do Xingu, principal porto dos passageiros com destino a Altamira.
De Altamira, Ruberley pegaria um ônibus e 12 horas depois chegaria a Santarém, onde participaria da festa de formatura de uma afilhada.
Além de 49 pessoas, a embarcação levava carga convencional (como alimentos) um Fiat Uno e duas motos.
Devido à chuva, a tripulação baixou lonas para que os passageiros não se molhassem. Foi quando vieram ventos fortes. "Aí ficou mais forte, o barco deu uma tombada, as pessoas pegaram coletes salva-vidas, mas não colocaram, só seguraram. De repente, veio um vento muito forte, e o barco virou."
Uma das hipóteses é que o naufrágio tenha ocorrido por causa de uma tromba-d'água.
"Como a lona estava abaixada, o pessoal não conseguia sair. Eu estava na parte de trás do barco e pulei."
Ele estava no meio do Xingu, um dos maiores do país, sem coletes. "Na mesma hora, alguém que estava no fundo atracou no meu short, e eu comecei a debater para me soltar. Infelizmente, nessa hora, não tem jeito. Se alguém me puxa, eu morro junto."
Um náufrago acendeu a lanterna de um celular e gritou que havia boias. Alguns passageiros estavam agarrados a elas. "Ele estava desesperado, porque a boia estava amarrada no barco, e ele estava com medo de o barco virar e puxar todo mundo. Eu pedi para ele ficar calmo, iluminar com o celular. Aí desamarrei do barco."
Eram quatro boias a deriva, que carregavam mais ou menos 20 pessoas, conta Ruberley. "Começamos a remar, batendo o pé, a mão, do jeito que dava. Mais para frente, encontramos um senhor e um garoto, apoiados em um isopor e um freezer, e puxamos eles. Quem a gente via, a gente tentava resgatar."
Duas horas depois do naufrágio, por volta das 23h30, uma balsa passou por eles, mas não parou. "Depois conseguimos chegar à margem. Isso já eram 3h30. Começamos a gritar e vimos uns focos de lanterna", conta ele, ao lembrar que são normais as casas isoladas à beira do rio.
"Abordei um ribeirinho, que lembrou de um rapaz que morava a 10 minutos e tinha uma voadeira [embarcação menor, com motor na popa e rápida]. Foi aí que fomos para a cidade, na voadeira."
Catraia - Seis anos antes, Ruberley tinha feito uma promessa: nunca mais andaria de lancha à noite. Uma embarcação que pilotava cruzou com uma catraia, espécie de canoa com motor, e três pessoas morreram. "Não sei de onde eu tirei coragem. Só precisava achar alguém com vida", diz sobre o acidente desta semana.
Com a voadeira do ribeirinho, seguiu para Porto de Moz, levando uma mulher, que tinha desmaiado duas vezes, e uma criança. Chegou às 5h30 na cidade. "Conhecia um rapaz da Defesa Divil, bati na casa dele, e disse: 'Eu queria que tu chamasse todo mundo, que um barco em que a gente ia para Vitória do Xingu naufragou e eu acho que morreu muita gente'. Chamei um secretário do prefeito, fui na delegacia, fui no hospital avisar e só aí eu fui para casa", conta ele, que narra a surpresa da mulher.
Quando chegou em casa, vestia só uma cueca –as roupas ficaram pelo caminho. Pegou dinheiro, abasteceu o barco e voltou ao local do acidente. "Dois ribeirinhos disseram: 'O que tem muito aí é morto'. Eu estava na adrenalina e voltei na esperança de encontrar alguém vivo. Meu desespero maior era esse. Quando eu cheguei lá, dei de cara com cinco corpos, uma criancinha de dois anos. E foi chegando o pessoal da Defesa Civil, da polícia."
Só chegou em casa finalmente para descansar por volta das 11h. Hipertenso, teve que ir a um hospital. Mesmo medicado, teve dificuldades de dormir naquela noite.
Ruberley é dono de um mercado. Na manhã desta quinta, um cortejo passou em frente ao estabelecimento. Ele passou mal e precisou fechar o comércio. "Podia ser o meu corpo que estava passando ali. Eu estou vivo. Mas e agora? E a dor dos familiares?"
Ele diz nunca ter imaginado viver algo parecido. "Ainda mais aqui, nessa região, calminha?" Apesar do trauma, não pretende parar de viajar de barco. "Se eu não for de barco, não saio mais."
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